6 de out. de 2010

As contas das atrocidades do passado devem ser acertadas

Do uso da violência contra o Estado ilegal

Por Vladimir Safatle

Nenhum país conseguiu consolidar a democracia sem acertar contas com os crimes de seu passado


Os fascistas fizeram de Auschwitz o paradigma da catástrofe social. Contra ele, o século XX cunhou o imperativo “fazer com que Auschwitz nunca mais ocorra”. Mas talvez não seja supérfluo perguntar, mais uma vez: o que exatamente aconteceu em Auschwitz que sela este nome com o selo do que nunca mais pode retornar?

É verdade que, diante da monstruosidade do acontecimento, colocar novamente uma questão desta natureza pode parecer algo absolutamente desnecessário. Pois, afinal, sabemos bem o que aconteceu em Auschwitz, acontecimento que sela este nome com a marca do nunca visto. Todos conhecem a resposta padrão. Auschwitz é o nome do genocídio industrial, programado como se programa uma meta empresarial quantitativa. Ele é o nome do desejo de eliminar o inumerável de um povo com a racionalidade instrumental de um administrador de empresas.

Mas, se devemos recolocar mais uma vez esta questão é para insistir na existência de um aspecto menos lembrado da lógica em operação nos campos de concentração. Até porque, infelizmente, a história conhece a recorrência macabra de genocídios. Começo com este ponto apenas para dizer que é bem provável que a dimensão realmente nova de Auschwitz esteja em outro lugar. Talvez ela não esteja apenas no desejo de eliminação, mas na articulação entre esse desejo de eliminação e o desejo sistemático de apagamento do acontecimento.


Devemos ser sensíveis ao caráter absolutamente intolerável do desejo de desaparecimento. Lembremos, neste sentido, desta frase trazida pela memória de alguns sobreviventes dos campos de concentração, frase que não terminava de sair da boca dos carrascos: “Ninguém acreditará que fizemos o que estamos fazendo. Não haverá traços nem memória”. O crime será perfeito, sem rastros, sem corpos, sem memória. Só fumaça que se esvai no ar saída das câmaras de gás. Pois o crime perfeito é aquele que não deixa cadáveres e o pior cadáver é o sofrimento que exige justiça. Valeria trazer, a este respeito, uma frase precisa de Jacques Derrida: “O que a ordem da representação tentou exterminar não foi somente milhões de vidas humanas, mas também uma exigência de justiça, e também nomes: e, primeiramente, a possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de lembrar o nome"1.

Foi nesse sentido que Auschwitz teve o triste destino de expor como o núcleo duro de todo totalitarismo se transforma em ação ordinária. Pois o totalitarismo não é apenas o aparato político fundado na operação de uma violência estatal que visa a eliminação de todo e qualquer setor da população que questiona a legalidade do poder, violência que visa criminalizar sistematicamente todo discurso de questionamento. Na verdade, o totalitarismo é fundado nesta violência muito mais brutal do que a eliminação física: a violência da eliminação simbólica. Assim, ele é a violência da imposição do desaparecimento do nome. No cerne de todo totalitarismo, haverá sempre a operação sistemática de retirar o nome daquele que a mim se opõe, de transformá-lo em um inominável cuja voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referência alguma.

Este inominável pode, inclusive, receber, não um nome, mas uma espécie de “designação impronunciável”, que visa isolá-lo em um isolamento sem retorno. “Subversivo”, “terrorista”. A partir desta designação aceita, nada mais falaremos do designado, pois simplesmente não seria possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada falaria, haveria muito “fanatismo” nestes simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, haveria muito “ressentimento” em suas intenções, haveria muito “niilismo” em suas ações. Ou seja, haveria muito “nada”.



Claro está que este inominável nada tem a ver com as estratégias (tão presentes na política do século XX) de recusar o nome atual, o regime atual de nomeação, isto a fim de abrir espaço a um nome por vir2. Antes, ele é a redução daquele colocado na exterioridade à condição de um inominável sem recuperação ou retorno3.

Que a violência simbólica do desaparecimento do nome, da anulação completa dos traços seja o sintoma mais brutal do totalitarismo, eis algo que explica porque, no momento em que a experiência da democracia ateniense começava a chegar ao fim, o espírito do povo produziu uma das mais belas reflexões a respeito dos limites do poder. Ela é o verdadeiro núcleo do que podemos encontrar nesta tragédia que não cessa de nos assombrar, a saber, "Antígona"4.

Muito já se foi dito a respeito desta tragédia, em especial seu pretenso conflito entre leis da família e leis da pólis. No entanto, vale a pena lembrar como no seu seio pulsa a seguinte ideia: o Estado deixa de ter qualquer legitimidade quando mata pela segunda vez aqueles que foram mortos fisicamente, o que fica claro na imposição do interdito legal de todo e qualquer cidadão enterrar Polinices, de todo e qualquer cidadão reconhecê-lo como sujeito apesar de seus crimes.

Pois não enterrá-lo só pode significar não acolher sua memória através dos rituais fúnebres, anular os traços de sua existência, retirar seu nome. Uma sociedade que transforma tal anulação em política de Estado, como dizia Sófocles, prepara sua própria ruína, elimina sua substância moral. Não tem mais o direito de existir enquanto Estado. E é isto que acontece a Tebas: ela sela seu fim no momento em que não reconhece mais os corpos dos “inimigos do Estado” como corpos a serem velados.

É neste sentido que algo de fundamental do projeto nazista e de todo e qualquer totalitarismo alcançou sua realização plena na América do Sul. A Argentina forneceu uma das imagens mais aterradoras desta catástrofe social: o sequestro de crianças filhas de desaparecidos políticos. Porque a morte física só não basta. Faz-se necessário apagar os traços, impedir que aqueles capazes de portar a memória das vítimas nasçam. E a pior forma de impedir isto é entregando os filhos das vítimas aos carrascos.

O desaparecimento deve ser total, ele deve ser objeto de uma solução definitiva. Não são apenas os corpos que desaparecem, mas os gritos de dor que têm a força de cortar o contínuo da história. “Não haverá portadores do seu sofrimento, ninguém dele se lembrará, nada aconteceu”, são as palavras que as ditaduras sul-americanas não cansaram de repetir àqueles que elas procuraram exterminar.

No entanto, na maioria dos casos, esse desejo de desaparecimento não teve força para perdurar. Na Argentina, por exemplo, amplos setores da sociedade civil foram capazes de forçar o governo de Nestor Kirchner a anular o aparato legal que impedia a punição de torturadores da ditadura militar. A Justiça não teve medo de novamente abrir os processos contra militares e de mostrar que era possível renomear os desaparecidos, reinscrever suas histórias no interior da história do país.

Da mesma forma, no Chile, graças à mobilização mundial produzida pela prisão de Augusto Pinochet em Londres, carrascos como Manuel Contrera foram condenados à prisão perpétua. O Exército foi obrigado a emitir nota oficial em que reconheceu não se solidarizar mais com seu passado. Em uma decisão de forte significado simbólico, mesmo o soldado que assassinou o cantor Victor Jara no Estádio Nacional também será processado. Nesse sentido, o único país que realizou de maneira bem sucedida as palavras dos carrascos nazistas foi o Brasil: o país que realizou a profecia mais monstruosa e espúria de todas. A profecia da violência sem trauma.


Toda violência se equivale?

Levando em conta tais questões, trata-se neste artigo de discutir a seguinte tese, tão presente nos últimos meses nos principais meios de comunicação deste país: o esquecimento dos “excessos” do passado é o preço doloroso pago para garantir a estabilidade democrática.

Não se trata simplesmente de insistir na falsidade patente, na ausência completa de amparo histórico desta tese. Antes, trata-se de mostrar como ela, longe de ser a enunciação desapaixonada e realista daqueles que sabem defender a democracia possível, é apenas o sintoma discreto de uma profunda tendência totalitária da qual nossa sociedade nunca conseguiu se livrar. Por isto, a aceitação tácita desta tese é, na verdade, a verdadeira causa do caráter deformado e bloqueado de nossa democracia. Assim como em Tebas, ela será o início da nossa ruína.

Antes de discuti-la, vale a pena, no entanto, dar às palavras seu verdadeiro lugar. Ao invés de falar do “esquecimento dos excessos do passado”, talvez seja o caso de falar em “amnésia sistemática em relação a crimes de um Estado ilegal”. Certamente, tal formulação não será aceita imediatamente por todos. Pois os defensores, brandos, amedrontados ou ferrenhos do Partido da Amnésia costumam utilizar dois argumentos, de acordo com a conveniência do momento.

Primeiro: “Não houve, no Brasil, tortura e assassinato como política sistemática de segurança de Estado; logo, não houve crime”. Alguns, como o coronel Carlos Alberto Brilhate Ustra, em processo impetrado contra ele pela família Teles, declaram aos autos que simplesmente nunca torturaram, que tudo isto é uma invenção de ressentidos esquerdistas. Os casos isolados de tortura e assassinato (se houver, já que ninguém até hoje foi obrigado pela Justiça a reconhecê-los perante os tribunais) teriam sido casos que ocorreram sem o consentimento do comando militar que dirigia o país. São casos a respeito dos quais o Estado brasileiro não poderia ser responsabilizado.

No entanto, se lembrarmos que há farta documentação internacional a respeito da participação do governo brasileiro na montagem da Operação Condor, aparato responsável pelo assassinato de opositores aos regimes militares sul-americanos, documentação que mereceria ao menos uma investigação séria, nada disto será ouvido.

Da mesma forma, de nada adianta lembrar que, pela primeira vez na história, ex-presidentes da República brasileira (como João Baptista Figueiredo) estão sendo julgados em processo referente a crimes contra a humanidade que tramita atualmente na Itália5, que torturadores internacionais declarados (como o general francês Paul Aussaresses) já disseram ter estado no Brasil à época para “treinamento militar”, que um ex-espião do serviço secreto uruguaio declarou ter envenenado um ex-presidente brasileiro (João Goulart) dando detalhes assustadores.

De nada adianta porque, como diziam os partidários de Pinochet à ocasião de sua prisão na Inglaterra, tudo isto é um complô internacional de esquerdistas. Os mesmos esquerdistas que possivelmente inventariam histórias horrendas sobre tortura, talvez a fim de simplesmente receber indenizações compensatórias.

Mas é interessante perceber como o primeiro argumento (“não houve, no Brasil, tortura e assassinato como política sistemática de segurança de Estado”) é enunciado ao mesmo tempo que um outro argumento: “Houve tortura e assassinato, mas estávamos em uma guerra contra ‘terroristas’ (como disse, por exemplo, o sr. Tércio Sampaio Ferraz, não em 1970, no auge da Guerra fria, mas em 2008), que queriam transformar o país em uma sucursal do comunismo internacional”. “O outro lado não era composto de santos”, costuma-se dizer.

Ao utilizar tal argumento, trata-se principalmente de tentar passar a ideia de que toda violência se equivale, que não há diferença entre violência e contra-violência ou, ainda, e aí em um claro revisionismo histórico delirante, que a violência militar foi um golpe preventivo contra um Estado comunista que estava sendo posto em marcha com a complacência do governo Goulart. Lembremos como alguns ainda falam atualmente em “contra-revolução” a fim de caracterizar o que teria sido o golpe de 1964. O que não escapa da tendência clássica de todo golpe de Estado procurar se legimitar ao se colocar como “contra-revolução”.

Vale a pena inicialmente lembrar que, em qualquer país do mundo, os dois argumentos (“Houve tortura” e “não houve tortura”) seriam vistos como exemplos clássicos e patéticos de contradição, o que mostraria claramente a inanidade intelectual de uma posição que precisa, a todo momento, bailar por entre argumentos contraditórios. No entanto, como se não bastasse, o segundo argumento é simplesmente uma aberração inaceitável àqueles para quem a ideia de democracia não é simplesmente uma palavra vazia. E, se levarmos em conta a situação atual em que se encontra, no Brasil, o debate a respeito do dever de memória, fica clara a necessidade de insistir na natureza aberrante de tal argumento.

Vejamos, por exemplo, a reação de setores do Supremo Tribunal Federal a respeito do debate sobre a modificação da interpretação da Lei de Anistia. Note-se bem, estamos falando de simples modificação de interpretação, e não de revisão do texto da lei. Trata-se de fazer valer a letra do artigo 1º, parágrafo II da Lei nº 6.683, em que se lê: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” –propõe-se lembrar que sequestros e atentados pessoais de toda ordem cometidos por membros do regime militar nunca foram objeto de anistia (sequer na lei que os próprios militares se auto-concederam). Isto, sem dizer que uma lei que fala em crimes de terrorismo não pode se furtar a condenar crimes de terrorismo de Estado.

No entanto, um dos arautos da ala conservadora do STF, presidente atual do referido tribunal, chegou ao limite de evocar o artigo 5, inciso 44, da Constituição nacional a fim de justificar que, caso militares fossem julgados por tortura, assassinato, sequestro, atentado pessoal e ocultação de cadáveres, então antigos membros da luta armada deveriam ter o mesmo destino.

Em um destes lapsos reveladores e patéticos em que o enunciador não percebe o que realmente diz, o referido ministro fundava sua argumentação no seguinte texto da lei constitucional: "Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”7.

Como se vê, o texto constitucional é de uma clareza cristalina. Sua ideia é: o Estado democrático, este no qual os princípios democráticos fundamentais estariam assegurados e implementados, compreende como crime imprescritível a tentativa de grupos armados (ou das próprias Forças Armadas, como sempre foi o caso no Brasil) em destruí-lo.

Que um ministro do STF compreenda que isto implica também a condenação constitucional de ações armadas contra o Estado militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984 só pode significar que, para ele, não há diferença estrutural entre Estado democrático e Estado ditatorial, ou que simplesmente não havia ditadura no Brasil naquele período.

Ou seja, a lei é muito clara na sua função de defender o Estado Democrático, esse mesmo Estado cujos rudimentos foram destruídos pelo golpe militar de 1964. O que a lei visa tornar crime inafiançável e imprescritível são raciocínios como este, tão bem exposto em manchete do "Jornal do Brasil", de 6 de abril de 1964: "Pontes de Miranda diz que Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la!"8. O que ela procurava bloquear é a afirmação de que, em situações “excepcionais” seria possível romper a lei para garantir o funcionamento da lei. No entanto, o referido ministro, em um salto mortal rumo à sofística, entendeu que a lei constitucional procurava criminalizar aqueles que lutaram contra uma ditadura militar.

Às vezes, perdemos a capacidade de enxergar o caráter absurdo de exceção que sela o destino do nosso país. Como se não bastasse o fato do Brasil ser o único país da América Latina onde a Lei de Anistia vale para acobertar crimes contra a humanidade, como o terrorismo de Estado, a tortura e a ocultação de cadáveres, o único país onde as Forças Armadas não fizeram um mea culpa sobre o regime militar, onde os corpos de desaparecidos ainda não foram identificados porque o Exército teima em não dar tais informações, descobrimos que, caso a anistia contra tais carrascos seja suspensa, ministros do STF estariam dispostos a condenar também militantes da luta armada contra o regime militar por assassinato e tortura.

Duas perguntas devem ser postas aqui a respeito do argumento de que “os dois lados têm crimes contra a humanidade”. A primeira é: qual foi o caso de tortura feito por “terroristas”? Como simplesmente não há (e, mesmo se houvesse, vale a pena lembrar que a Lei de Anistia não prescreveu os ditos crimes de sangue, tanto foi assim que guerrilheiros que assaltaram bancos e participaram de atentados continuaram na prisão após 1979), criou-se um argumento de circunstância que consiste em dizer que os sequestros também eram crimes contra a humanidade.

Como não adianta lembrar que crimes contra a humanidade são crimes perpetrados pelo Estado contra seus cidadãos, e não ações feitas contra um Estado ilegal e seu aparato de defesa, alguns generais de reserva chegaram a dizer que o sequestro de 78 horas do embaixador norte-americano Charles Elbrick equivalia a tortura e assassinato. O detalhe é que Elbrick, ao ser solto, não procurou um hospital por algum tipo de sequela, mas se resumiu a dizer: “Ser embaixador nem sempre é um mar de rosas”. Não há notícias de que algum torturado tenha reagido desta forma, et pour cause.

A segunda pergunta que devemos colocar aqui é: se o raciocínio de reciprocidade, que fundamenta esta posição, é realmente algo a ser levado a sério pelo saber jurídico, então, por exemplo, por que o Tribunal de Nuremberg não condenou os resistentes franceses contra o governo de Vichy?

Pois, diga-se de passagem, é bom lembrar que tais resistentes cometeram assassinatos, torturas bárbaras e sabotagens não apenas contra um Estado nacional constituído comandado por um antigo heroi de guerra, marechal Pétain, mas também contra cidadãos franceses. Qual era o princípio jurídico adotado neste caso? Ele não consistia em dizer que a violência sistemática do Estado contra o cidadão em hipótese alguma equivale à violência do cidadão contra um Estado ilegal e seus aliados? Ou ainda, que devemos compreender a importância de desenvolver um conceito como “Estado ilegal”?


Anatomia do Estado ilegal

A fim de procurar colocar tal questão em seu solo adequado, devemos lembrar que a tradição política liberal (note-se bem, a tradição liberal, e não apenas revolucionária de esquerda) admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano e às estruturas de seu poder, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o governo e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social9.

Isso demonstra como, mesmo a partir do ponto de vista dos princípios do liberalismo político, o argumento que visa retirar a legitimidade da violência contra o aparato repressivo da ditadura militar brasileira é inaceitável. Ou seja, esta é uma batalha que não separa esquerda e liberais, mas que se fundamenta no reconhecimento de uma espécie de campo comum entre as duas posições. Insistamos neste aspecto: mesmo do ponto de vista da tradição liberal, a situação brasileira é uma completa aberração intolerável.

Devemos levar esse ponto a sério e perder o medo de dizer em alto e bom som: toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal. Um Estado ilegal não pode julgar ações contra si por ser ele próprio algo mais próximo de uma associação criminosa. E devemos dizer ainda mais: do ponto de vista estritamente jurídico-normativo, o regime militar brasileiro era mais ilegal que o Estado nazista alemão.

Como bem lembra Giorgio Agamben, do ponto de vista técnico, Hitler não pode ser chamado de ditador. Ele era chanceler do Reich legalmente designado após uma eleição na qual seu partido venceu, respaldado pela Constituição liberal da Republica de Weimar (o que demonstra quão pouco uma Constituição liberal pode garantir10). Contrariamente aos generais brasileiros, ele não depôs ninguém e não suspendeu a Constituição. O que ele fez foi utilizar o artigo 48 da Constituição de Weimar, que previa a decretação do Estado de emergência e governar sob Estado de sítio durante 12 anos. A comparação serve apenas (e gostaria de insistir no sentido limitador deste “apenas”) para ilustrar o caráter claro do Estado ilegal brasileiro que imperou no Brasil entre 1964 e 1984.

Devemos insistir nessa questão. Pois podemos dizer que dois princípios maiores fundam a experiência de modernização política que caracteriza a tradição da qual fazemos parte.

O primeiro destes princípios afirma que um governo só é legítimo quando se funda sobre a vontade soberana de um povo livre para fazer valer a multiplicidade de interpretações a respeito da própria noção de “liberdade”. Um governo marcado por eliminação de partidos, atemorização sistemática de setores organizados da sociedade civil, censura, eleições de fachada marcadas por casuísmos infinitos, além de assassinato e exílio de adversários como política de Estado certamente não cabe neste caso (diga-se de passagem, isso vale tanto para ditaduras de direita quanto para revoluções populares em estado de degenerescência, regimes totalitários burocráticos ou despotismo oriental travestido de esquerda).

Nesse sentido, podemos estabelecer, como princípio, que a legalidade de todo e qualquer Estado está ligada à sua capacidade em criar estruturas institucionais que realizem a experiência social da liberdade. Ele deve, ainda, levar em conta que a própria determinação do sentido do conceito de “liberdade” é o objeto por excelência do embate político.

“Liberdade” é o nome do que expõe a natureza conflitual da sociedade. Não estamos de acordo a respeito do que significa “liberdade”, já que, para ela, convergem aspirações advindas de tradições políticas distintas. Podemos afirmar que liberdade é indissociável do “igualitarismo radical” e do “combate à exploração socioeconomica”. Ou podemos insistir que a liberdade é indissociável do “direito à propriedade”. No entanto, bloquear a possibilidade política de combate em torno de processos e valores e, com isto, ignorar a natureza conflitual do vínculo social, é sempre a primeira ação de um Estado ilegal11.

Por isso, podemos dizer que o segundo princípio que constitui a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Quando o Estado se transforma em Estado ilegal, a resistência por todos os meios é um direito. Nesse sentido, eliminar o direito à violência contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar o fundamento substantivo da democracia12.

Que a democracia deva, através deste problema, confrontar-se com “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica”, ou ainda com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito"13, que ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas nem por isto ilegal, nem por isto equivalente à exceção própria ao poder soberano, eis um dos elementos maiores a exigir nossa criatividade política.

Não creio ser necessário aqui fazer a gênese da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito à violência contra um Estado ilegal. No que diz respeito ao Ocidente, é bem provável que sua consciência nasça da reforma protestante com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica.

Ela está presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento fundador da modernidade política. Artigo que afirma “que todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres"14. Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo IV da Constituição alemã como “direito à resistência” ("Recht zum Widerstand"). Encontramos um direito similar enunciado em várias Constituições de Estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse, Carolina do Norte, entre outros).

No entanto, não devemos compreender a ideia fundamental desse direito à resistência simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores (direito à propriedade, afirmação do individualismo etc.). Na verdade, em seu interior encontramos a ideia fundamental de que o bloqueio da soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos compreender por “soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força.

Este é o solo adequado para compreendermos o que está em jogo na negação brasileira do reconhecimento da incomensurabilidade entre a violência do Estado ditatorial e a violência contra o Estado. Este é o solo adequado para apreendermos o sentido da tentativa de desaparecimento do nome daqueles que participaram da luta armada contra a ditadura. Pois podemos dizer, neste sentido, que os jovens que entraram na luta armada aplicaram o direito mais elementar: o direito de levantar armas contra um Estado ilegal, fundado através da usurpação pura e simples do poder graças a um golpe de Estado e ao uso sistemático da violência estatal. Desconhecer este direito é, este sim, o ato totalitário por excelência.

Nesse sentido, não devemos tolerar o argumento de que nos países socialistas também havia terrorismo de Estado e era isto que a luta armada procurava implantar no Brasil. Os nazistas tentavam desqualificar seus opositores como serviçais da ordem bolchevique. Galtieri, Videla, Contreras também tentaram. No entanto todos eles foram ou estão presos. O que mostra como o Brasil deve ser o único país no mundo onde este argumento vale. Pois o resto do mundo sabe que aqueles que lutam contra um Estado ilegal são vistos inicialmente como exercendo um direito maior que é o fundamento de toda democracia real: o direito de dizer “não”, nem que seja através das armas. Não é por outra razão que países como a França tratam comunistas que participaram da resistência, como Jean Cavaillès e Guy Moquet, como herois nacionais.

Devemos lembrar aqui de um dado claro e fundamental. Não havia luta armada de esquerda antes do golpe militar de 1964. Não há nenhum caso registrado de grupo guerrilheiro atuante antes do golpe15, embora houvesse, de maneira reiterada, sublevações militares conservadoras contra governos eleitos que não tinham vínculo algum com a esquerda revolucionária (como as sublevações de Jacarecanga e Aragarças no governo Juscelino Kubitschek) e tentativas de golpe desde o segundo governo Vargas. Isto demonstra como a luta armada esteve vinculada primeiramente à recusa legítima ao regime militar, ao caráter insuportável que ele adquiriu para vários setores da população nacional.

Essa recusa não pode ser deslegitimada, mesmo que devamos criticar o projeto de sociedade que vários destes grupos pensavam em implementar. De toda forma, a multiplicidade política de trajetórias de ex-membros da luta armada (encontramos vários deles em partidos cujo espectro vai do PSOL ao PSDB) mostra retrospectivamente como eles eram unidos principalmente pela recusa, e não pela partilha de um projeto positivo claramente delimitado. Vale a pena insistir neste ponto: o que unia todos os que entraram na luta armada não era um projeto comum, mas uma recusa comum.

Como se não bastasse tudo isto, devemos lembrar dos inúmeros casos de assassinatos de pessoas que absolutamente nada tinham a ver com grupos comunistas, que eram apenas opositores do regime militar, como ocorreu com o ex-deputado federal Rubens Paiva e o jornalista Vladimir Herzog. Apenas estes casos já serviriam para colocar em xeque o argumento geralmente utilizado pelo pensamento conservador nacional de que julgar os crimes da ditadura é insensato porque significaria julgar ações do Estado na guerra de defesa contra a “ameaça comunista”.

Mesmo em uma situação de guerra (o que não era o caso, mas podemos assumir o argumento apenas para mostrar como seus defensores perdem o jogo no tabuleiro que eles mesmos escolhem), se integrantes do Exército deliberadamente assassinam inocentes, eles são processados.

Por fim, cabe aqui lembrar que o processo político presente na esquerda brasileira pré-1964 estava muito mais próximo da dinâmica que redundou, anos depois, na eleição de Salvador Allende, no Chile, do que de algo parecido com a lógica revolucionária cubana. Tratava-se de um processo de conquista gradual de maiorias políticas no interior da democracia parlamentar. Processo que visava permitir a sustentação institucional para a realização de políticas amplas de reformas e de modernização estrutural das sociedades latino-americanas.

Mas, para o pensamento conservador, era exatamente este o processo mais perigoso. Pois ele demonstraria a viabilidade de uma esquerda, ao mesmo tempo, profundamente transformadora e capaz de assumir processos próprios às democracias parlamentares, modificando seu sentido “por dentro”. Esquerda capaz de recuperar o sentido concreto da noção de democracia para além da catástrofe totalitária própria à experiência dos países da órbita soviética.

Nesse sentido, a esquerda latino-americana estava destinada a romper a polaridade entre social-democracia de escopo reformista limitado e comunismo totalitário. Seu lugar no interior da história da esquerda mundial era substantivo. Podemos mesmo dizer que esta terceira alternativa, em gestação na América do Sul, era o verdadeiro alvo da Guerra Fria entre nós.


A exceção brasileira

Se são insustentáveis os dois argumentos contraditórios utilizados para invalidar que as palavras corretas que descrevem o que acontece atualmente entre nós é a incitação à amnésia sistemática a respeito de crimes de um Estado ilegal, então podemos abordar o último problema e perguntar: seria tal amnésia o preço doloroso exigido para a estabilidade democrática? Como mostra o exemplo bíblico da mulher de Ló, aqueles que olham demais para trás não correriam o risco de se transformarem em estátuas de sal?

Esta pergunta merece duas respostas. Uma “regional” e outra “estrutural”.

A resposta “regional” consiste em simplesmente lembrar que nossa democracia não é estável nem progride em direção ao aperfeiçoamento. Ao contrário, ela tropeça nos mesmos problemas e é incapaz de superar os impasses que a atormentam há 25 anos. Não vivemos em um período de estabilidade democrática.

Vivemos em um período de desagregação normativa com suspensão de dispositivos legais devido à interferência de interesses econômicos no Estado (vide caso Daniel Dantas), bloqueio da capacidade de participação popular nos processos de gestão do Estado (já que tal participação se reduz à construção periódica de conscientes eleitorais em eleições onde todos os partidos vencedores se viabilizam financeiramente através de expedientes fora-da-lei), denúncias sucessivas de “mar de lama” desde a primeira eleição presidencial e, por fim, o fato aberrante de uma Constituição que, 20 anos depois de ser promulgada, possui um conjunto inumerável de artigos de lei que simplesmente não vigoram, além de ter recebido mais de 60 emendas –como se fosse questão de continuamente flexibilizar as leis a partir das conveniências do momento.

Vivemos em um país cujo primeiro presidente pós-ditadura sofreu um impeachment, onde pesam graves suspeitas, nunca esclarecidas de maneira satisfatória, de que o segundo presidente eleito tenha comprado sua reeleição e cujo procurador-geral respondia pela alcunha nada simpática de “engavetador-geral" e onde o terceiro continuou o mesmo tipo de relação com o Congresso e com os operadores econômicos. Há algo de obsceno em chamar tal situação de “consolidação da normalidade democrática”.

De qualquer forma, nada disso deveria nos impressionar, já que, por nunca ter feito um tribunal contra a ditadura, o Brasil nunca disse claramente rechaçar as praticas político-administrativas típicas dos operadores de regimes totalitários como o brasileiro, um regime cínico por fazer questão de mostrar não levar a sério as leis que ele mesmo enunciava. Regime que era capaz de assinar tratados de defesa dos direitos humanos enquanto torturava e desaparecia com os corpos. É da incapacidade de lidar com nosso passado que vem o caráter deteriorado da nossa democracia.

Levemos em conta uma das características mais decisivas da ditadura brasileira : sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência.

Tínhamos eleições com direito a partido de oposição, editoras que publicavam livros de Marx, Lenin, Celso Furtado, músicas de protesto, governo que assinava tratados internacionais contra a tortura, mas, no fundo, sabíamos que tudo isto estava submetido à decisão arbitrária de um poder soberano que se colocava fora do ordenamento jurídico. Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificadas, os livros apreendidos, as músicas censuradas, alguém desaparecia, em suma, a lei era suspensa.

Uma ditadura que se servia da legalidade para transformar seu poder soberano de suspender a lei, de designar terroristas, de assassinar opositores, em um arbítrio absolutamente traumático. Pois, nesse tipo de situação, nunca se sabe quando se está fora da lei, já que o próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer momento, direito e ausência de direito, dentro e fora da lei. O que nos demonstra como a verdadeira função da ditadura brasileira era gerir a generalização de uma situação de anomia que ele mesmo alimentava.

Por fim, vale a pena terminar insistindo em uma resposta “estrutural” aos arautos do Partido da Amnésia. Ela consiste em lembrar que nenhum país conseguiu consolidar sua substância normativa sem acertar contas com os crimes de seu passado.

Se há algo que deveríamos aprender de uma vez por todas é: não há esquecimento quando sujeitos sentem-se violados por práticas sistemáticas de violência estatal e de bloqueio da liberdade socialmente reconhecida. Se há algo que a história nos ensina é: os mortos nunca se calam. Aqueles cujos nomes o poder procurou anular sempre voltam com a força irredutível dos espectros. Pois, como dizia Lacan, aquilo que é expulso do universo simbólico, retorna no real.

Por mais que todos procurem se livrar dos mortos, matando-os uma segunda vez, matando-os com esta morte simbólica que consiste em dizer que a morte deles foi em vão, que seu destino é a vala comum da história, que seus nomes nada valem, que não merecem ser objetos de memória coletiva, os corpos retornam.

Os nazistas descobriram isto, os militares argentinos e chilenos também. Chegará o tempo em que o Brasil descobrirá. Pois não haverá perdão enquanto não houver reconhecimento do crime. Essa suspensão do perdão, talvez a única possibilidade para tentarmos constituir uma verdadeira democracia, nos levará a cunhar um imperativo tão forte quanto aquele que o século XX cunhou contra Auschwitz: “Impedir que os mortos sejam mortos uma segunda vez”. Desde Antígona, este é o limite que nos separa da simples barbárie.


Este texto faz parte do livro "O Que Resta da Ditadura? A Excecão Brasileira", organizado por Vladimir Safatle e Edson Telles, que será publicado em março pela editora Boitempo.


Publicado em 22/1/2010, em: Trópico.


Vladimir Safatle
É professor do departamento de filosofia da USP e autor, entre outros, de "A Paixão do Negativo: Lacan e a Dialética" (Unesp, 2006), "Lacan" (Publifolha, 2007) e "Cinismo e Falência da Crítica" (Boitempo, 2008).

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