15 de out. de 2010

A história do Mundo III

Por David Coimbra de seu blog
Como foi inventada a monogamia
Claro que sei que existem homens que são… são… oh, Deus, tremo só de escrever essa palavra, mas escrevê-la-ei ainda assim, em nome da objetividade do texto, para ser bem compreendido pelos meus pudicos leitores, para que a história flua, então, a contragosto digo que sei que alguns homens são… infiéis!
Sério.
São.
Confesso, pejado, que conheço um homem que trai a mulher.
Por Deus, trai.


É horrível, é medonho, mas ele trai. Já o aconselhei a parar com isso, mas não adianta. Ele trai e trai e trai. Tem… amantes. Copula com elas e tudo mais. Deve estar por aí, não duvido que você o conheça. Vendo, você não acreditaria: ele é igualzinho a nós, só que é um adúltero.
Esse meu censurável conhecido, ele não seria censurável tempos atrás. Lembre-se dos primeiros dois ou três milhões de anos da Humanidade, sobre os quais tanto escrevi em linhas passadas. Dois milhões de anos de caça, coleta e festa, em que não havia casamento, família ou propriedade. Dois milhões de anos em que o homem não supunha ter participação na reprodução e em que todos no clã mantinham intercurso sexual sem restrições, vergonha ou camisinha. Ninguém era de ninguém naquele tempo sensato.
Certo.
Vimos que esse período, o da caça e da coleta, foi alterado quando o homem descobriu que podia criar animais para o abate ou domesticá-los para uso pessoal. Isso há recentes 30 mil anos, quando o neanderthal se extinguiu suavemente da superfície da Terra. Mas as atividades de caça e coleta continuaram sendo exercidas, em sistema misto. A mudança realmente radical, o marco da Civilização, ocorreu há 10 mil anos, quando foi inventada a agricultura.
A mulher, no recesso do lar primevo, viu que as sementes, rojadas ao solo, germinavam, cresciam e davam frutos de comer. Quer dizer: as plantas, como os animais, poderiam ser domesticadas. A mulher mostrou ao homem que, em se plantando, tudo dá. O homem começou a cultivar o solo, a colher no tempo certo e a reforçar sua dieta. Com a agricultura, o homem não precisava mais mudar-se a todo momento a fim de sobreviver.
Agora uma pausa.
Neste ponto, exatamente no instante em que o homem abandona o nomadismo e adere ao sedentarismo, precisamente aí faz-se necessária uma reflexão. É que a vida sedentária goza de sólida unanimidade na sociedade. Já li e ouvi muito sobre as dificuldades do nomadismo, sobre os perigos e incertezas de uma existência sem endereço definido.
Não estou certo disso. Havia inúmeras facilidades na vida nômade, caçadora e coletora. Era uma vida mais simples. Porque cultivar o solo não é uma atividade nada fácil, como sabe qualquer colono de Nova Hartz. Você tem que acordar de madrugada, tem que se submeter a uma rotina excruciante, tem que calejar as mãos sob o sol inclemente ou debaixo de frio enregelante. Em resumo, tem que trabalhar duro.
Trabalhar é chato. Não é por outro motivo que inventaram a escravidão e o salário mínimo. Por que, então, o homem preferiu a agricultura e abandonou o nomadismo? Por que preferiu o trabalho massacrante da Civilização à vadiagem álacre do paleolítico?
Aí está. Por causa da inércia. O homem busca a rotina, mesmo que a rotina seja maçante.
Porque a rotina lhe dá segurança.
O homem prefere as certezas da prisão às dúvidas da liberdade.
Há uma história de Philip Marlowe
, o detetive de Raymond Chandler, que ilustra o que digo. Esta:
Uma bela mulher pisa com seus elegantes escarpins salto 15 no tapete puído do escritório de Marlowe. Senta-se, cruza as pernas, puxa uma longa piteira da bolsa e começa a falar com sua voz rouca, enquanto a fumaça azul da cigarrilha se transforma em um véu diáfano diante de seu rosto. Ela é casada, tem dois filhos e se passaram já quatro anos desde que o marido desapareceu. Fez de tudo para achá-lo. Em vão. Não há motivos aparentes para o sumiço, não há corpo, ele não tinha inimigos. Não há pista alguma, portanto. O homem simplesmente saiu para trabalhar e não voltou mais.
Marlowe aceita o caso e sai a procurar o marido evanescido. Depois de algumas peripécias, encontra-o em outra cidade, em outro Estado. Identifica-o e o interroga. Mais do que pretender levá-lo de volta, quer saciar a curiosidade. Por que ele foi embora? O homem conta sua história: não havia nada de errado em sua vida, não havia queixas, nem razões para ir-se. Deu-se que, uma manhã, ele saiu de casa para ir trabalhar, como todas as outras manhãs antes daquela.
Caminhava pela calçada quando uma viga de ferro desabou do alto de um edifício em construção. A viga mergulhou na vertical e, como uma bomba, abriu um buraco na calçada a um metro de distância dele. Aquilo o desnorteou. Sem fazer qualquer reflexão profunda, ele continuou andando a esmo, pensando tão-somente que poderia ter morrido, que aquele poderia ter sido o seu último dia. Não foi ao trabalho, ir ao trabalho não tinha sentido depois do ocorrido. Seguiu caminhando. Caminhou, caminhou, até a estação de trem, onde comprou uma passagem para uma cidade, qualquer cidade, não importava. O que ele queria era mudar.
Foi isso, nada mais do que isso. Porém, nesta outra cidade, o homem arranjou trabalho, o mesmo que exercia até então. Depois, conheceu uma mulher, não muito diferente da que deixou. Apaixonou-se. Casou-se. Teve dois filhos. Ou seja: na nova cidade ele reproduziu a vida anterior. Queria mudar, queria ser outro, mas o dia a dia, as coisas pequenas da vida, a força da rotina fez com que ele fizesse tudo como sempre havia feito.
É assim que é. O homem só vive tranquilo se sabe o que o dia nascente lhe reserva. Ele pode sonhar com a novidade, com a liberdade, com o descompromisso, mas este é o sonho; a realidade cinzenta de cada dia, a soma vagarosa, quase entediante, das ações comezinhas é que faz com que ele construa algo, com que ele se sinta humano.
A agricultura, ao fixar o homem ao solo, retirou-lhe a aventura e a liberdade, mas conferiu-lhe a segurança dos dias iguais. Além disso, há que se considerar o peso da idade. Mais bem alimentado, graças à criação de animais em cativeiro, o homem passou a viver mais. Vivendo mais, provou os efeitos da experiência e da maturidade, sim, mas também os da decadência física. Quanto mais velho, mais necessidade tem o homem das comodidades do sedentarismo. Logo, a agricultura veio a calhar.
O problema é que a vida agrícola depende essencialmente da terra. Isto é: o homem precisava ter a terra, para plantar.
Eis o verbo decisivo: ter.
Até então, o homem não tinha nada. O macho, nem filhos ele tinha. Os filhos pertenciam às fêmeas. O homem não tinha bens, não tinha casa, não tinha móveis. Tinha alguns poucos utensílios pessoais que carregava com ele, mas que, se os perdesse, poderia construir um novo facilmente com o que lhe ofertava a natureza: uma pedra para lascar, uma vara para afilar. Agora, o homem precisava TER. Precisava ter terra onde plantar e uma casa sobre ela para morar. Nesta casa havia de ter lugar em que dormir e comer, havia de ter instrumentos para trabalhar a terra e armas para protegê-la.
Ter. O homem, agora, tinha.
A propriedade foi um subproduto da agricultura.
E, como o macho sabia que ele também participava ativamente da reprodução, queria que o que acumulara em vida passasse para a sua descendência, depois de sua morte.
O conceito de herança, pois, foi um subproduto da propriedade.
Mas como o macho podia ter certeza de que o filho herdeiro era mesmo dele? Como??? A mulher podia ter esta certeza. Afinal, o filho ganhava a luz do mundo ao sair da sua barriga. Mas o homem… Como saber que a semente plantada naquele ventre era mesmo dele, numa época em que os laboratórios não faziam teste de DNA? Só existia uma forma realmente segura: obrigar a fêmea a fazer sexo apenas com ele. Donde, a invenção da monogamia.
A monogamia é um subproduto da herança.
Monogamia feminina, ressalte-se. Os homens mantinham várias mulheres. Quantas pudessem sustentar.
Agora, não pense que as mulheres foram submetidas a essa nova ordem. Não foi exatamente assim. As mulheres aceitaram bem este arranjo.
Só que os problemas, os verdadeiros problemas, estavam começando.

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