22 de out. de 2010

Integralidade do voto que autorizou a conversão em pena restritiva de direitos nos crimes disposto na Lei 11.343/06

do Informativo 604 do STF

Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substituição de Pena Privativa de Liberdade por Restritivas de Direitos (Transcrições)

(v. Informativo 598)

HC 97256/RS*


RELATOR: Min. Ayres Britto

VOTO: Feito o relatório, passo ao voto. Ao fazê-lo, de logo anoto que, pela primeira vez, o texto normativo do art. 44 da Lei 11.343/06 é focadamente submetido ao Plenário do Supremo Tribunal Federal. Texto que veda expressamente, em tema de tráfico ilícito de entorpecentes, a possibilidade de conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos.
8. A Defensoria Pública da União, conforme visto, sustenta a inconstitucionalidade do referido preceito, sob a alegação de ofensa aos seguintes incisos do art. 5º da Magna Carta: inciso XXXV, ao argumento da inafastabilidade de apreciação, pelo Poder Judiciário, de lesão ou ameaça de lesão a direito; inciso XLVI, consagrador da individualização da pena; e inciso LIV, veiculador de proporcionalidade da resposta estatal ao delito.
9. Eis a redação do dispositivo legal impugnado:

Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico.

10. Calha relembrar que, por todo o período de vigência da Lei 6.368/76, revogada pela Lei 11.343/06, e mesmo com o advento da Lei 8.072/90, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se manteve firme no sentido de admitir a conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos. Ao reverso, dava pela compatibilidade jurídica entre a aplicação da pena privativa de liberdade e a previsão de regime penitenciário totalmente fechado. Isso nos originários termos da Lei de Crimes Hediondos, posteriormente tida por inconstitucional por esta Casa de Justiça. (Cf. HC 96.149/SP, Segunda Turma, de relatoria do ministro Eros Grau, DJ 11/09/2009; HC 93.857/RS, Segunda Turma, de relatoria do ministro Cezar Peluso, DJ 16/10/2009; HC 91.600/RS, Primeira Turma, de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence, DJ 06/09/2007; HC 90.871/MG, Primeira Turma, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, DJ 25/05/2007.)
11. Externando o mesmo pensamento, eis o núcleo do meu voto no julgamento do HC 85.894/RJ (Tribunal Pleno, DJ 28/09/2007), de relatoria do ministro Gilmar Mendes, mas ainda à luz da Lei 8.072/90:

[...] não há óbice à substituição de penas privativas de liberdade por outras restritivas de direitos, nos casos de crimes hediondos e de tráfico de drogas. Isso porque o momento da definição da espécie de pena aplicável é — bem disse o eminente relator — antecedente àquele da estipulação do modo pelo qual se dará o respectivo cumprimento. Leia-se: somente após fixada a espécie de pena (se privativa de liberdade ou restritiva de direito) é que se pode cogitar do regime de seu cumprimento. A substituição da pena deve preceder à incidência do regime de seu cumprimento, não havendo que se cogitar da aplicação da Lei nº 8.072/90 como óbice ao pedido de substituição5. Esse raciocínio homenageia, sobretudo, o princípio da individualização da pena, naquela tessitura que se dá em dois momentos: no momento judicial da fixação e no instante administrativo da execução da reprimenda. Não foi por outro motivo que acompanhei o Min. Cezar Peluso, no julgamento do HC 84.928, ocasião em que o Min. Pertence ressaltou a viragem na jurisprudência do Tribunal, já agora na linha do voto que fora vencido no HC 80.010 (Rel. Min. Octavio Gallotti). De se ver:
Entendo que há, na individualização da pena, momentos distintos: a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, se faz na sentença - é o momento judicial da individualização da pena; outro, inteiramente inconfundível, a meu ver, data vênia, é o problema da progressão, ou não, na execução da pena.

6. Neste rumo de idéias também se posicionam Luiz Regis Prado e Francisco de Assis Toledo, in verbis:

Em se tratando de delito previsto na Lei nº 8.072 (Lei dos Crimes Hediondos), cabe dizer que a exigência constante nesse diploma – a saber, cumprimento integral da pena privativa de liberdade aplicada em regime fechado (art. 2º, § 1º ) – não constitui óbice à eventual substituição da pena privativa de liberdade imposta por penas restritivas de direitos. E isso porque a fixação do regime se limita às hipóteses de cumprimento efetivo da pena de prisão, e a substituição desta por penas restritivas de direitos afasta, a princípio, a possibilidade de ter início a execução da pena privativa de liberdade determinada na sentença. Demais disso, deve-se ter presente que a substituição da pena imposta por pena restritiva de direitos deve atender, concomitantemente, aos requisitos objetivos e subjetivos listados no artigo 44 do Código Penal. E apenas quando preenchidas as exigências legais será possível a substituição. O rótulo do delito como hediondo não pode figurar como empecilho à substituição, desde que cabível. Em tese, admitiriam a referida substituição alguns dos delitos elencados na Lei 8.072/90, desde que satisfeitos os requisitos impostos à concessão da medida, visto que não consta da legislação especial – e tampouco do Código Penal – qualquer dispositivo em contrário.
[PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral: arts. 1º a 120. 3a ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 494/495.]

7. Acresce que este Plenário já decidiu pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 (HC 82.959), pelo qual se sustentava a impossibilidade de aplicação do regime de substituição das penas aos delitos hediondos e de tráfico de entorpecentes. Razão por que, mesmo o Min. Joaquim Barbosa, que inaugurou a divergência no presente julgamento, passou a conceder medidas liminares em casos que tais (HC 88.319).
8. Por tudo quanto posto, acompanho o relator para deferir o habeas corpus, no reconhecimento de que é juridicamente possível substituir pena privativa de liberdade por outras restritivas de direitos, mesmo nos julgamentos de crime de tráfico ilícito de entorpecentes. O que faço com a ressalva de que a gravidade do crime e a suficiência da pena restritiva de direito hão de ser apreciadas em concreto pelo juiz sentenciante.

12. Confirmo, então, que o centrado desafio temático deste voto é saber se a proibição estabelecida pela nova lei, isto é, a Lei 11.343/06, encontra ou não encontra suporte no sistema de comandos da Constituição Federal. O que demandará elaboração teórica mais cuidadosa para a perfeita compreensão da natureza e do alcance da garantia constitucional da individualização da pena. Com o que teremos condições objetivas de inferir se o modelo adotado pela Lei de Tóxicos, ao estabelecer a vedação em causa (a título de regulação da matéria), extravasa ou não extravasa o núcleo significativo dessa garantia da individualização da reprimenda penal. Reprimenda enquanto reação estatal ao tráfico ilícito de entorpecentes, que é modalidade integrante do rol dos crimes hediondos, a meu ver, ou dos delitos a ele assemelhados, segundo a classificação de alguns penalistas.
13. Leia-se a figura do crime hediondo, tal como descrita no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal:

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

14. Daqui já se pode vocalizar um primeiro juízo técnico: em tema de vedações de benefícios penais ao preso, ou, então, ao agente penalmente condenado, o Magno Texto Federal impõe à lei que verse por modo igual os delitos por ele de pronto indicados como hediondos e outros que venham a receber a mesma tarja. Sem diferenciação entre o que já é hediondo por qualificação diretamente constitucional e hediondo por descrição legal. Isonomia interna de tratamento, portanto, antecipadamente assegurada pela nossa Constituição.
15. Um novo e complementar juízo: embora o Magno Texto Federal habilite a lei para completar a lista dos crimes hediondos, a ela impôs um limite material: a não-concessão dos benefícios da fiança, da graça e da anistia para os que incidirem em tais delitos. É como dizer, a própria norma constitucional cuidou de enunciar as restrições a ser impostas àqueles que venham a cometer as infrações penais adjetivadas de hediondas. Não incluindo nesse catálogo de restrições a vedação à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Ponto pacífico. Percepção acima de qualquer discussão ou contradita.
16. Insista-se na idéia: no tema em causa, a Constituição da República fez clara opção por não admitir tratamento penal ordinário mais rigoroso do que o nela mesma previsto. Subtraiu do legislador comum a possibilidade de estabelecer constrições sobejantes daquelas já preestabelecidas pelo próprio legislador constituinte. É como penso, atento ao postulado de que a norma constitucional restritiva de direitos ou garantias fundamentais é de ser contidamente interpretada, inclusive em sua primária aplicação pelo legislador comum.
17. Foi além a Magna Carta, porque também não fez diferenciação constritiva entre os crimes por ela nominados. Nenhuma diferenciação restritiva avançou quanto aos benefícios penais ou às causas excludentes de criminalidade que optou por retirar do âmbito dos crimes ali expressamente indicados. Basta pensar na determinação da imprescritibilidade, que ficou limitada à prática do racismo (inciso XLII do art. 5º) e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático (inciso XLIV do art. 5º). Também assim a pena de morte, que somente incide nos casos de guerra declarada (alínea a do inciso XLVII do art. 5º). Já no campo da vedação à extradição, dele foi excluído o brasileiro naturalizado quanto ao comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei, ou em caso de crime comum praticado antes da naturalização (inciso LI do art. 5º).
18. Numa frase, em matéria de crimes hediondos, não há como reforçar o discurso da própria Constituição da República quanto às excludentes de punibilidade ou à proibição de benefício penal a quem responder pela autoria deles. Afinal, o que se tem como próprio do capítulo versante sobre direitos e garantias individuais - historicamente oponíveis ao Estado, inclusive ao Estado-legislador - é ampliar a esfera de liberdade das pessoas naturais. Não é estreitar ou por qualquer modo encurtar esse espaço de movimentação humana. Tanto é assim que toda a nominata dos direitos e garantias constitucionais do indivíduo é expressamente circundada pelo que se convencionou chamar de cláusula pétrea (inciso IV do § 4º do art. 60 da CF). Nunca implicando demasia recordar que mesmo a pessoa condenada pelo mais infamante dos delitos não decai jamais de sua dignidade intrínseca de ser humano. Não se animaliza perante o Direito e muito menos há de ser tratado como coisa ou anódico objeto.
19. Por outro aspecto, quanto à garantia mesma da individualização da pena, mais uma proposição nos parece cabível: sem impor a essa garantia qualquer restrição por conta própria, a Carta Magna preceitua no inciso XLVI do seu art. 5º:

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos.

20. Analisando esse dispositivo, no HC 82.959/SP (Tribunal Pleno, DJ 01/09/2006), tive a oportunidade de pontuar que, embora o preceito não prescinda da intercalação de diploma legal, o núcleo semântico da garantia à individualização da pena não pode ser por ele nulificado. Eis o que verbalizei em linhas gerais:

É certo que o inciso XLVI do art. 5º da Constituição não regulou, por si mesmo, as condições ou os requisitos da individualização da pena. Convocou o legislador de segundo escalão para fazê-lo (a lei regulará a individualização da pena (...). Mas não é menos certo que se cuida de um transpasse de poder normativo que não priva o dispositivo constitucional de toda e qualquer dimensão eficacial imediata. É exprimir: o preceito constitucional em exame não prescinde da intercalação da lei comum, é fato, porém não é de ser nulificado por ela. Se compete à lei indicar os parâmetros de densificação da garantia constitucional da individualização do castigo, a esse diploma legal não é permitido se desgarrar do núcleo significativo binário que exsurge da Constituição mesma: o momento concreto da aplicação da pena privativa de liberdade, seguido do instante igualmente concreto do respectivo cumprimento em recinto penitenciário. Ali, busca da justa medida entre ação criminosa dos sentenciados e reação coativa do Estado. Aqui, a mesma procura de uma justa medida, só que no transcurso de uma outra relação de causa e efeito: de uma parte, a resposta crescentemente positiva do encarcerado ao esforço estatal de recuperá-lo para a normalidade do convívio social; de outra banda, a passagem de um regime prisional mais severo (porque integralmente fechado) para outro menos rigoroso (porque já incorporante de saídas do presídio e retorno a ele em horas certas).

21. Nesse diapasão é que Luiz Luisi (Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª ed., 2003, p. 52), citando Nelson Hungria, ensina que se deve entender por individualização da pena o processo que visa a retribuir o mal concreto do crime com o mal concreto da pena, na concreta personalidade do criminoso.
22. É isso mesmo. Por um modo convergente, os doutrinadores compreendem que o processo de individualização da pena é um caminhar no rumo da personalização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em três momentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial e o executório ou administrativo. Discorrendo sobre cada um desses momentos, ou, melhor dizendo, cada uma dessas etapas do conceito individualizador, todas destinadas a garantir o axioma da pena particularizada ou rigorosamente personalizada, inextensível, portanto, a qualquer outro indivíduo. O mesmo Luiz Luisi (ob. cit., p. 52, 53 e 55) aduz que:

Na primeira etapa através de lei, – que fixa para cada tipo penal uma ou mais penas proporcionais a importância do bem tutelado e a gravidade da ofensa. Não se trata de penas com quantitativos fixos e certos. Também prevê as espécies de pena e muitas vezes as prevê de forma alternativa, e mesmo, em outras ocasiões, dispõe a sua aplicação cumulada. Em outros textos normativos viabiliza as substituições da pena, geralmente as mais graves por espécies mais atenuadas.
Todavia a lei penal não se limita às previsões normativas mencionadas mas, também, fixa regras que vão permitir as ulteriores individualizações. Assim ao estabelecer as regras que o juiz deve obedecer para chegar, em cada caso, considerando suas peculiaridades, à fixação da pena definitiva e concreta. Como é, ainda, na lei que se hão de encontrar as diretrizes balizadoras da execução as sanções penais.
O segundo momento é o da individualização judiciária. Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.
A individualização judiciária, embora as regras que a devem orientar estejam na lei, enseja ao Juiz uma indiscutível discricionariedade.
[...]
O juiz, pois, nos limites que a lei impõe realiza uma tarefa de ajustamento da resposta penal em função não só das circunstâncias objetivas, mas principalmente da pessoa do denunciado, e, também, do comportamento da vítima.
[...]
Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução. 'Aí', – como observa Aníbal Bruno, – é que a sanção penal, 'começa verdadeiramente a atuar sobre o delinqüente, que se mostrou insensível à ameaça contida na cominação'.
[...]
Nos quadros da nossa orientação constitucional e ordinária pode se entender ter prevalecido o que se poderá chamar de 'polifuncionalidade' da sanção penal, ou seja, uma concepção eclética em que se integram as instâncias retributivas e as da reinserção social.

23. Daqui se deduz que a lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinqüente a sanção criminal que a ele, juiz, se afigurar como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação (mandado de otimização, diria Ronald Dworkin) de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto - porque não dizer? - a opção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o racional. É que a pura racionalidade se dá nos colmos olímpicos da abstração mental, sempre ávida por trabalhar com categorias tão universais quanto atemporais, que são categorias aprioristicamente válidas para toda e qualquer situação existencial. Diferentemente do juízo de razoabilidade, que toma em linha de conta o contexto ou a contingência das protagonizações humanas. Atenta à elementar consideração de que o Direito é feito para a concreta vida dos homens em sociedade, e o fato é que a concreta vida dos homens em sociedade escapa até mesmo à mais circunstanciada ou minudente descrição legislativa. Regida que é, tal como na particularizada esfera dos fenômenos quânticos, pelos princípios da complementariedade e da incerteza - para lembrar a conhecida categorização de Heizemberg. Ou como no Século V antes de Cristo sentenciava Heráclito: o ser das coisas é o movimento (e as coisas ditas humanas não fogem à regra). Por isso que só o impermanente é que é permanente; somente o inconstante é que é constante, porque tudo muda incessantemente, menos a incessante mudança.
24. Em suma, estamos a falar de uma necessária ponderação em concreto, ditada pelo permanente esforço do juiz para conciliar segurança jurídica e justiça material. Segurança e justiça que figuram desde o preâmbulo da Magna Carta Federal entre os valores de pronto qualificados como valores supremos de uma sociedade pluralista, fraterna e sem preconceitos. Saltando aos olhos que é esse tipo de sociedade que se põe como base de inspiração do princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º) e, pour cause, do advento de um sistema de direito penal humanista.
25. Noutro modo de falar sobre a mesma coisa, o momento sentencial da dosimetria da pena não significa senão a imperiosa tarefa individualizadora de transportar para as singularidades objetivas e subjetivas do caso concreto - a cena empírico-penal, orteguiana por definição - os comandos genéricos, impessoais e abstratos da lei. Vale dizer, nessa primeira etapa da concretude individualizadora da reprimenda (a segunda etapa concreta já se dá intramuros penitenciários), o juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou de restrição da liberdade de condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado. Sem prejuízo, claro, da proposição de que a lei, se não pode fechar para o julgador a porta da alternatividade sancionatório-penal, pode prever a cumulação da pena que tenha por conteúdo a liberdade com outra desprovida de tal natureza. Como, por hipótese, a pena de perda de bens e a multa, ambas perfeitamente compatíveis com o seu adicionamento à perda ou então à constrição da liberdade da pessoa natural.
26. O que estamos a ajuizar não é senão o seguinte: o direito penal bem pode cumular penas, inclusive a privativa e a restritiva da liberdade corporal (vide o § 4º do art. 37 da CF, emblemático em tema de cumulação de sanções), mas lhe é vedado subtrair da instância julgadora a possibilidade de se movimentar com discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória. Uma coisa é a lei estabelecer condições mais severas para a concreta incidência da alternatividade; severidade jurisdicionalmente sindicável tão-só pelos vetores da razoabilidade e da proporcionalidade. Outra coisa, porém, é proibir ao julgador, pura e secamente, a convolação da pena supressora da liberdade em pena restritiva de direitos. Opção que a encarecida garantia da individualização da reprimenda, exatamente por ser a antítese da desindividualização, não tolera.
27. Feito luva encomendada, e ante o paradigmático precedente que declarou a inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime prisional em se tratando de crimes hediondos (HC 82.959/SP, julg. cit.), o ministro Eros Grau vocalizou que o Congresso Nacional, a quem primeiro se dirige o princípio da individualização da pena, não pode impor regra que impeça o julgador de individualizar, segundo sua avaliação, caso a caso, a pena do condenado que tenha praticado qualquer dos crimes relacionados como hediondos.
28. De proposição em proposição interpretativa, tendo por objeto o inciso XLVI do art. 5º da Constituição, chegamos a um novo patamar de intelecção: a garantia constitucional da individualização da pena foi regrada pela Constituição em dispositivo posterior, justamente, àquele referente aos crimes hediondos (aqui, inciso XLVI do art. 5º; ali, inciso XLIII). Mais que isso, a garantia em apreço antecede o próprio rol de penas que o Magno Texto Republicano aponta como passíveis de fixação por lei. Quero dizer: ao começar o seu discurso normativo sobre a garantia da individualização da reprimenda penal (inciso XLVI do art. 5º, reprise-se), a Constituição brasileira o fez em termos absolutamente assecuratórios ou proclamativos dessa garantia. Ela mesma, Constituição Federal, sem precisar da lei comum, fez de tal garantia uma cabal situação jurídica subjetiva de todo e qualquer indivíduo, independentemente do crime por ele cometido ou mesmo da pena que venha a sofrer. Daí a mencionada alocação topográfica, para significar que, perante a nossa Lei Maior, a garantia da individualização da pena tudo recobre, no sentido de que é permeante assim do crime quanto do castigo; ou seja, ao requestar o comando intercalar da lei, a Lei Maior o fez apenas para que a legislação ordinária regulasse as condições de aplicabilidade do instituto (individualização da pena) em função de cada tipo penal. Não para excluir do âmbito desse peregrino direito adjetivo qualquer dos tipos criminais, dado que se trata de situação jurídica ativa concebida para incidir em face de qualquer dos delitos legalmente descritos e do seu específico apenamento. Por isso que nela própria, Magna Carta, nenhuma exceção foi aberta à incidência da personalização da reprimenda. Nenhuma. Nem por ocasião do atuar legislativo do Estado nem nas subseqüentes fases da dosimetria e do regime de execução intramuros penitenciário. No particular, cuida-se de enunciado constitucional que escapa à classificação das normas restringíveis (normas de eficácia contida, na linguagem de José Afonso da Silva), pois insuscetível de contração no seu núcleo deôntico ou de intrasigente proteção individual.
29. De se perceber, portanto, que as penas restritivas de direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos certamente traumáticos, estigmatizantes e onerosos do cárcere. Não é à toa que todas elas são comumente chamadas de penas alternativas, pois essa é mesmo a sua natureza: constituir-se num substitutivo ao encarceramento e suas sempre que possível contornáveis seqüelas.
30. Não por acaso é que a primeira das penas a que se refere o inciso XLVI do art. 5º da Constituição Federal é justamente a mais dura de todas: a privação ou restrição da liberdade corporal do agente. Em imediata sequência é que vêm a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos, todas elas, de parelha com a possibilidade da referida aplicação cumulativa, significantes de aplicabilidade alternativa àquela de maior dureza. Opção constitucional que, além de cultuar o vetor da proporcionalidade entre os bens jurídicos violados e a resposta punitiva do Estado, traduz que a pena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a função retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sanção penal. As demais penas também são vocacionadas para esse geminado papel da retribuição-prevenção-ressocialização, e ninguém melhor do que o juiz natural da causa para saber, no caso concreto, qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente para castigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado. Além de inibir, obviamente, condutas de igual desvalia social. Conciliando ele, juiz sentenciante, justiça material e segurança jurídica. Que já significa fazer andar de braços dados a concreta individualização da pena e o sistema da justiça penal eficaz. Tudo em congruente unidade. Tudo como lídima expressão da categoria jurídico-positiva (não simplesmente lógica) da razoabilidade.
31 . Todas essas proposições ganham em claridade se nos lembrarmos de que a nossa Constituição prestigiou, mais que tudo, a liberdade física das pessoas, fazendo do aprisionamento uma exceção. A regra geral que adotou foi a do não-encarceramento, a saber: a) em primeiro lugar, enuncia que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (inciso LXI do art. 5º); b) prescreve que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (inciso LVII do art. 5º - princípio da não-culpabilidade); c) indica de logo a pena privativa ou restritiva da liberdade como uma espécie de ultima ratio, por ser a mais grave entre aquelas franqueadas à conformação por lei comum (alínea a do inciso XLVI do art. 5º). Daí que, no próprio dispositivo em que habilita a lei ordinária a cominar pena privativa ou restritiva de liberdade, ela, Constituição, de pronto arrola espécies de apenamento (perda de bens, multa, prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos), que a lei tanto pode fazer incidir sob o regime da cumulatividade, quanto não pode subtrair do regime de convolação; isto é, penas que a lei não está obrigada a cumular com outras, mas que obrigatoriamente se disponibilizam para o regime de substituição àquelas que tenham por conteúdo a liberdade humana.
32. Foi exatamente à luz dessa vertente constitucional da convolação que, em 1998, por meio da Lei 9.714, o legislador ordinário ampliou as possibilidades de aplicação de uma outra modalidade de pena substitutiva do aprisionamento: a restritiva de direitos. Isso para conferir ao art. 44 do Código Penal a sua atual redação, que fixa as balizas da substituição com base em pressupostos de ordem objetiva e subjetiva. Com o que, reitero, a lei densificou por mais um modo a superlativa garantia constitucional da individualização de toda e qualquer reprimenda penal. Eis a dicção desse emblemático art. 44:

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II - o réu não for reincidente em crime doloso;
III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
§ 1º (VETADO)
§ 2º Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos.
§ 3º Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.
§ 4º A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão.
§ 5º Sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, por outro crime, o juiz da execução penal decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior.
(Sem destaques no original)

33. Cuida-se, então, de necessário recurso à ponderação judicial de fatos-tipo e sua autoria delituosa, na trama de um processo orteguiano de concretização constitucional que o art. 59 do Código Penal assim veio a completar:

Art. 59 - o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
[...]
IV - a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

34. Já em sede doutrinária, outro não é o testemunho intelectual de Alberto Silva Franco (Crimes Hediondos, São Paulo: RT, 6ª ed., 2007, p. 195 e 196), para quem, mesmo ante a experiência haurida na vigência da Lei 6.368/76, era constitucional a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nos casos de tráfico ilícito de entorpecentes de menor potencial ofensivo. Confira-se:

A aplicabilidade das penas restritivas de liberdade revelava-se, sobretudo, adequada em relação a hipóteses menores de tráfico ilícito de entorpecentes, para as quais a sanção penal se mostrava, por vezes, excessiva ou desproporcionada. Como observa Francisco de Assis Toledo, 'o fato de que o tráfico 'passou a ser tratado com extremo rigor desde o advento da Constituição de 1988' não constitui argumento suficiente para invalidar a opção do legislador'. 'Como a zona fronteiriça entre o vício e o tráfico nem sempre é muito nítida, a possibilidade da aplicação aos casos ocorrentes da pena substitutiva é uma boa solução, permitindo a correção ou a atenuação daqueles excessos'. De igual teor é o parecer de Mário Magalhães Papaterra Limongi: 'Não se pode dizer que a legislação mais dura tem permitido a condenação dos principais traficantes. Quem se der ao trabalho de manusear os processos que são instaurados, verificará com facilidade que a maioria esmagadora das pessoas presas são pequenos traficantes que, a toda evidência, não podem ser apontados como os que dominam o comércio e a distribuição de substâncias entorpecentes. Em verdade, com algumas exceções, a quantidade de drogas apreendidas não é significativa, o que permite concluir que as pessoas processadas como traficantes são, de fato, mulas, permanecendo ignorados os que vivem do odioso negócio. Como a legislação não distingue, pratica o mesmo crime quem transporta toneladas de cocaína como a mulher do preso que, em dia de visita, leva ao seu companheiro pequena quantidade de maconha.'

35. Já vai longo o presente voto, reconheço, mas não ao ponto de sacrificar a proposição adicional de que, mesmo no plano dos tratados e convenções internacionais, aprovados e promulgados pelo Estado brasileiro, é conferido tratamento diferenciado ao tráfico ilícito de entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencial ofensivo. Tratamento diferenciado, esse, para possibilitar alternativas ao encarceiramento. É o caso da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, incorporada ao direito interno pelo Decreto 154, de 26 de junho de 1991, que prevê, na alínea c do § 4º do art. 3º: Não obstante o disposto nos incisos anteriores, nos casos apropriados de infrações de caráter menor, as Partes poderão substituir a condenação ou sanção penal pela aplicação de outras medidas tais como educação, reabilitação ou reintegração social, bem como, quando o delinqüente é toxicômano, de tratamento e de acompanhamento posterior. Norma supralegal de hierarquia intermediária, portanto, que autoriza cada Estado soberano a adotar norma comum interna que viabilize a aplicação da pena substitutiva (a restritiva de direitos) no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Donde o julgado proferido no HC 100.888/SC, Primeira Turma, de minha própria relatoria, DJ 12/03/2010, assim ementado:

HABEAS CORPUS. SALVO-CONDUTO. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. DÍVIDA DE CARÁTER NÃO ALIMENTAR. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a orientação de que só é possível a prisão civil do 'responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia' (inciso LXVII do art. 5º da CF/88). Precedentes: HCs 87.585 e 92.566, da relatoria do ministro Marco Aurélio.
2. A norma que se extrai do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal é de eficácia restringível. Pelo que as duas exceções nela contidas podem ser aportadas por lei, quebrantando, assim, a força protetora da proibição, como regra geral, da prisão civil por dívida.
3. O Pacto de San José da Costa Rica (ratificado pelo Brasil - Decreto 678 de 6 de novembro de 1992), para valer como norma jurídica interna do Brasil, há de ter como fundamento de validade o § 2º do artigo 5º da Magna Carta. A se contrapor, então, a qualquer norma ordinária originariamente brasileira que preveja a prisão civil por dívida. Noutros termos: o Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter como fundamento de validade o § 2º do art. 5º da CF/88, prevalece como norma supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é norma constitucional - à falta do rito exigido pelo § 3º do art. 5º -, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida.
4. No caso, o paciente corre o risco de ver contra si expedido mandado prisional por se encontrar na situação de infiel depositário judicial.
5. Ordem concedida.

36. Ora, é esse o caso dos autos, na medida em que o paciente teve reconhecido, em seu benefício, a causa de diminuição de pena que se lê no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, no seu limite máximo de 2/3 (dois terços) de encurtamento, em função da favorabilidade de todas as circunstâncias judiciais. Isso aliado à pequena quantidade e à falta de diversidade da droga apreendida, ficando a condenação, em termos definitivos, aplicada em 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão, sob regime prisional fechado, além de 160 (cento e sessenta) dias-multa, cuja unidade restou fixada em seu mínimo legal. E já ficou expresso nestas páginas que, em tema de direitos fundamentais, entre os quais se acha inserida a garantia da individualização da reprimenda penal (devidamente incrustada no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos), é certo ajuizar que a formulação adotada pela Carta Magna traduz uma garantia que opera como inafastável elemento de contenção do poder de legislar. Não como u'a mera orientação geral ao legislador ordinário. É o que inspiradamente pontua o ministro Gilmar Mendes (HC 82.959/SP, julg. cit.), a propósito do regime de progressão penitenciária da pena, verbis:

O entendimento segundo o qual a disposição constitucional sobre a individualização estaria exclusivamente voltada para o legislador, sem qualquer significado para a posição individual, além de revelar que se cuidaria então de norma extravagante no catálogo de direitos fundamentais, esvaziaria por completo qualquer eficácia dessa norma. É que, para fixar a individualização da pena in abstracto, o legislador não precisaria sequer de autorização constitucional expressa. Bastaria aqui o critério geral do nullum crimen, nulla poena sine lege.
[...]
Em verdade, estou convencido de que a fórmula aberta parece indicar, tal como em relação aos demais comandos constitucionais que remetem a uma intervenção legislativa, que o princípio da individualização da pena fundamenta um direito subjetivo, que não se restringe à simples fixação da pena in abstracto, mas que se revela abrangente da própria forma de individualização (progressão).
Em outros termos, a fórmula utilizada pelo constituinte assegura um direito fundamental à individualização da pena. A referência à lei - princípio da reserva legal - explicita tão-somente, que esse direito está submetido a uma restrição legal expressa e que o legislador poderá fazer as distinções e qualificações, tendo em vista as múltiplas peculiaridades que dimanam da situação a reclamar regulação.
É evidente, porém, que, como todos sabem, que a reserva legal também está submetida a limites. Do contrário, ter-se-ia a possibilidade de nulificação do direito fundamental submetido à reserva legal por simples decisão legislativa. Este é o cerne da questão. Se se está diante de um direito fundamental à individualização da pena e não de uma mera orientação geral ao legislador - até porque para isso - despicienda seria a inclusão do dispositivo no elenco dos direitos fundamentais - então há que se cogitar do limite à ação do legislador na espécie.
Em outras palavras, é de se indagar se o legislador poderia, tendo em vista a natureza do delito, prescrever, como o fez na espécie, que a pena privativa de liberdade seria cumprida integralmente em regime fechado, isto é, se na autorização para intervenção no âmbito de proteção desse direito está implícita a possibilidade de eliminar qualquer progressividade na execução da pena.

37. Nessa toada de intelecção de normas constitucionais veiculadoras de direitos e garantias individuais, desborda da reserva legal criminalizadora (porque extrapolante da mera regulação) fazer distinções ainda mais severas que as estampadas no próprio lastro formal da Constituição. A tanto não chega o poder regulatório da lei, exatamente porque em mortal rota de colisão com esse tão humano quanto realístico preceito do inciso XLVI do art. 5º da nossa Lei Fundamental.
38. É como assentaram os ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, respectivamente, no julgamento do referido HC 82.959/SP, a propósito do regime de aprisionamento dos sentenciados penais e quando ainda vigente a Lei 8.072/90:

Por último, há de se considerar que a própria Constituição Federal contempla as restrições a serem impostas àqueles que se mostrem incursos em dispositivos da Lei 8.072/90 e dentre elas não é dado encontrar a relativa à progressividade do regime de cumprimento da pena. O inciso XLIII do rol das garantias constitucionais - artigo 5º - afasta, tão-somente, a fiança, a graça e a anistia para, em inciso posterior (XLVI), assegurar de forma abrangente, sem excepcionar esta ou aquela prática delituosa, a individualização da pena. Como, então, entender que o legislador ordinário o possa fazer? Seria a mesma coisa que estender aos chamados crimes hediondos e assim enquadrados pela citada Lei, a imprescritibilidade que o legislador constitucional somente colou às ações relativas a atos de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (inciso XLVI). Indaga-se: é possível ao legislador comum fazê-lo? A resposta somente pode ser negativa, a menos que se coloque em plano secundário a circunstância de que a previsão constitucional está contida no elenco das garantias constitucionais, conduzindo, por isso mesmo, à ilação no sentido de que, a contrario sensu, as demais ações ficam sujeitas à regra geral da prescrição. O mesmo raciocínio tem pertinência no que concerne à extensão, pela Lei em comento, do dispositivo atinente à clemência ou indulto, quando a Carta, em norma de exceção, apenas rechaçou a anistia e a graça - inciso XLIII do artigo 5º.
Destarte, tenho como inconstitucional o preceito do § 1º do artigo 2º da Lei 8.072/90, no que dispõe que a pena imposta pela prática de qualquer dos crimes nela mencionados será cumprida, integralmente, no regime fechado.
(Ministro Marco Aurélio)

A Constituição Federal, ao criar a figura do crime hediondo, assim dispôs no art. 5°, XLIII:

'a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem'. (grifei)

Excepcionou, portanto, de modo nítido, da regra geral da liberdade sob fiança e da possibilidade de graça ou anistia, dentre outros, os crimes hediondos, vedando-lhes apenas com igual nitidez: a) a liberdade provisória sob fiança; b) a concessão de graça; c) a concessão de anistia.
Não fez menção nenhuma a vedação de progressão de regime, como, aliás - é bom lembrar -, tampouco receitou tratamento penal stricto sensu (sanção penal) mais severo, quer no que tange ao incremento das penas, quer no tocante à sua execução.
[...]
Mas não é só.
Quando o constituinte reservou o tratamento excepcional (no sentido primário de exceção) aos crimes hediondos, não lhes vetou progressão de regime (forma de individualização da execução da pena), nem impôs outra restrição qualquer à incidência da regra da individualização.
J.J. GOMES CANOTIILHO, ao cuidar do regime das leis restritivas de direitos fundamentais, ensina que compreende ele três instâncias: 1ª. delimitação do âmbito de proteção da norma; 2ª. averiguação do tipo, natureza e finalidade da restrição; e, 3ª. controle da observância dos limites estabelecidos pela Constituição às leis restritivas (problema do limite de limites). Tais instâncias funcionam como critérios de interpretação-aplicação das normas restritivas de direitos, liberdades e garantias.
Dentro do âmbito da 3ª instância - limite de limites - enquadra-se a exigência de autorização de restrição expressa, que, nas palavras do eminente constitucionalista português, 'tem como objectivo obrigar o legislador a procurar sempre nas mesmas normas constitucionais o fundamento concreto para o exercício de sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias, e criar segurança jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva.' E, acrescenta, 'a exigência de autorização constitucional expressa visa exercer uma função da advertência (Warnfunktion) relativamente ao legislador, tornando-o consciente do significado e alcance da limitação de direitos, liberdades e garantias, e constituir uma norma de proibição, pois sob reserva de lei restritiva não se poderão englobar outros direitos salvo os autorizados pela Constituição.'
A autorização constitucional para a restrição de direitos deve, pois, ser observada à risca pelo legislador, sob pena de entrar em contraste com a Constituição.
De modo que não resiste a tal exigência a vedação de progressão de regime prevista no dispositivo controverso, que deve, por ambos os fundamentos, ser declarado inconstitucional.
(Ministro Cezar Peluso)

39. Não estancam por aqui os valiosos ensinamentos do ministro Cezar Peluso (HC 82.959/SP, julg. cit.), pois de Sua Excelência ainda são as seguintes palavras:

Evidente, assim, que, perante a Constituição, o princípio da individualização da pena compreende: a) proporcionalidade entre o crime praticado e a sanção abstratamente cominada no preceito secundário da norma penal; b) individualização da pena aplicada em conformidade com o ato singular praticado por agente em concreto (dosimetria da pena); c) individualização da sua execução, segundo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o comportamento do condenado no cumprimento da pena (no cárcere ou fora dele, no caso das demais penas que não a privativa de liberdade) e à vista do delito cometido (art. 5º, XLVIII).

40. A tessitura desse raciocínio também se adensa em nível propriamente doutrinário, conforme se vê da seguinte passagem de Alberto Silva Franco (ob. cit., p. 75-77):

De um lado, situam-se as normas constitucionais de criminalização que se resumem a indicar determinados bens jurídicos em relação aos quais o legislador constituinte comunica ao legislador infraconstitucional sua obrigação de lhes dar proteção penal. Ao fazê-lo, é evidente que invade a esfera de atuação normal do legislador penal, dispensando-o implicitamente da tarefa de formular tanto o juízo sobre a dignidade do bem jurídico a ser protegido, quanto o da necessidade de tutela penal. São exemplos significativos desse tipo de norma constitucional criminalizadora o inc. XLI do art. 5.º e os arts. 225, § 3.º, e 227, § 4.º, todos da Constituição da República.
De outro lado, posicionam-se as normas constitucionais de criminalização que, além da indicação dos bens jurídicos, acrescentam expressas limitações, quer de natureza penal, quer de natureza processual penal, que são estritamente impostas ao legislador ordinário. Exemplificam essas obrigações constitucionais de criminalização os incs. XLII, XLIII e XLIV do art. 5.º da Constituição Federal. Desses incisos, interessa em particular - e será, agora, objeto de exame - o inc. XLIII do art. 5.º da Constituição Federal, ou seja, o que trata dos crimes hediondos e dos crimes que lhe são assemelhados.
Numa segunda abordagem, cabe observar que a norma criminalizadora do inc. XLIII do art. 5.º alavancou um microssistema fechado e autônomo, de origem constitucional, que se coloca ao lado do sistema penal geral e aberto, formulado pelo legislador ordinário. Note-se que o texto constitucional não se resumiu apenas e tão-somente ao comando de criminalizar fatos até então sem definição na legislação penal ordinária e aos quais deu a denominação de hediondos. Foi além. Equiparou a esses delitos desconhecidos, no momento da formatação constitucional, os crimes de tortura, de tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas afins e de terrorismo. Mas o legislador constituinte não se restringiu à explicitação desses quatro tipos penais: recorreu ao sistema penal e ao sistema processual penal pré-existentes para deles importar regras restritivas que necessariamente deveriam acompanhar o processo criminalizador: não caberiam as causas excludentes de punibilidade como a anistia e a graça, nem tampouco seria pertinente a fiança. E mais, ao inserir o inciso XLIII no art. 5.º da Constituição Federal, ou seja, no capítulo referente aos direitos e garantias individuais, o legislador constituinte obstou que se pudesse excluí-lo, através de emenda constitucional (art. 60, § 4.º, inc. IV, da Constituição Federal).
[...]
Numa quarta abordagem, os delitos enquadrados no comando incriminador do inc. LXIII do art. 5.º da Constituição Federal revelam, por seus termos, que o legislador constituinte emprestou-lhes a mais alta gravidade - insuperável danosidade social estabelecida em nível constitucional -, colocando-os no topo de todo o sistema penal. Assim, pode o legislador ordinário estabelecer gradações punitivas diversificadas, mas todos os delitos que pertencem ao rol constitucional fazem parte de um só microssistema, com igual gravidade em abstrato.
Numa quinta abordagem, é inequívoca a necessidade de o legislador ordinário estar submetido às limitações penais e processuais penais procedentes do comando constitucional. Diante delas, não lhe compete aferir se são pertinentes ou não. Encontra-se ele diante de um expediente comunicatório de deliberação de nível superior e só lhe cabe obedecer, incluindo, no texto legal, as restrições preestabelecidas. O ato de conformação às limitações provindas do dispositivo constitucional não pode, contudo, ser compensado com o alargamento dessas limitações para efeito de excluir, radical e peremptoriamente, o eventual infrator de qualquer dos tipos, que compõem o microssistema, de outros direitos ou benefícios não relacionados na norma criminalizadora e que participam do sistema penal geral.
[...] Assim, a Lei 11.343/2006, revogatória de todas as leis anteriores sobre drogas, como se fosse um corpo estranho e nada tivesse a ver com o microssistema criado pela norma constitucional criminalizadora do inc. XLIII do art. 5.º da Constituição Federal, estabeleceu, no seu art. 44, um abusivo e ampliado rol de limitações não previstas no texto constitucional. Assim, os crimes referidos nos arts. 33, caput e § 1.º, 34 e 37 da Lei 11.343/2006 não seriam suscetíveis, além das restrições contidas no texto originário da Lei 8.072/90, ao sursis e à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos.

41. Por tudo quanto exposto, formato a parte dispositiva deste voto com o reconhecimento da prejudicialidade das medidas que a Procuradoria-Geral da República pretende concedidas de ofício. Medidas, essas, no sentido de que, em alternativa à vedação da incidência de pena substitutiva, seja reconhecida ao paciente a possibilidade de gozar da suspensão condicional da pena e do regime prisional aberto. É que, no sistema trifásico de aplicação da pena, a aferição, pelo juiz, do cabimento da conversão de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos antecede a do sursis e a do regime inicial de cumprimento do castigo penal, como amplamente sabido.
42. No mais, concedo parcialmente o habeas corpus. Não para assegurar ao paciente a imediata e requerida convolação, menos ainda o pronto desfrute da sua liberdade de locomoção. Não é isso. Concedo a ordem para remover o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/06, assim como da expressão análoga vedada a conversão em penas restritivas de direitos, constante do § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Equivale a dizer: declaro incidentalmente inconstitucional, com efeito ex nunc (na linha do entendimento firmado no HC 82.959/SP, julg. cit.), a proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos. O que me leva a determinar ao Juízo da execução penal que faça a avaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação em causa, na concreta situação do paciente.
43. É como voto.

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