18 de out. de 2010

O árduo trabalho da defesa no processo crime

Do blog do Alexandre Moraes
Prefácio do livro "Redesenhando a execução penal"
Defender acusados no Brasil de hoje é quase uma atividade clandestina. O estigma de defender “bandidos”, buscar a efetivação de Direitos Humanos, passa a ser o discurso dos iludidos pela crença de que o Direito Penal e a pena servem para alguma coisa a mais do que uma resposta estatal agnóstica. Mas lidar com gente que acredita, piamente, no que se parece, no semblant, evidente, é dilema de quem atua nesta seara. Claro que não se trata de acreditarmos numa posição antecedente de “anjos” e “demônios”, dado que este maniqueísmo é próprio de uma compreensão religiosa, não laica, da qual devemos sempre suspeitar, especialmente da pretensão universal de bondade. Neste imaginário coletivo e universal de que a segurança coletiva prepondera sobre direitos e garantias individuais postam-se os defensores das regras de todos, a saber, dos que hoje estão submetidos ao poder estatal, via pena, e daqueles que hoje gozam ao verem o mal infligido, embora possam ser os submetidos de amanhã.
Neste contexto a sociedade do espetáculo de que nos fala Guy Debord arregimenta um sistema de instituições aptas a tirar proveito, em conluio com a classe política, da gestão do medo, via sistema penal, transformando o fato violento em produto, ou seja, o crime virou produto e vende muito! Basta ver o quanto se dedica nas programações televisivas e de jornais às notícias “policiais”. Pensar por aí pode ser uma das chaves para entender que o sujeito que se posta na defesa intransigente das regras do jogo é tachado, não sem razão, de “advogado do diabo”. 

Com efeito, em 1983 o Papa João Paulo II extinguiu a figura do “advogado do Diabo” (advocatus diaboli) nos processos de Canonização, deixando que tudo ficasse a cargo do Promotor da Fé (Promotor Fidei). Este último, portanto, congrega em si mesmo os atributos para, sem contraditório, reconhecer os “Milagres” e opinar pela canonização. Com a exclusão do contraditório a Igreja Católica conseguiu acelerar os processos de canonização, pois quem tinha a função de permanentemente desconfiar, apontar os equívocos, as dúvidas, dos invocados “Milagres”, foi consumido. A aceleração na produção de novos “beatos” e “santos” se fez ver logo em seguida. Enquanto no período de 1900 até 1983 haviam ocorrido 98 canonizações, de 1983 até hoje ocorreram mais de 500, “democratizando” os “milagres” (da multiplicação, quem sabe) pelo mundo, na busca, frenética, por novas conversões... Este fato pode marcar o que se passa, desde sempre, com a Execução Penal, dado que neste processo, administrativizado, a figura do advogado/defensor é apenas tolerada e não admitida. 

Na verdade, na eterna e imaginária da luta do bem contra o mal, de gente que precisa se tratar, porque coloca no outro, muitas e muitas vezes, suas angústias pessoais, mormente de salvação da sociedade – e todos salvadores são paranóicos e canalhas – afastando-se de uma compreensão adequada democraticamente de respeito pela dignidade humana. Logo após terminar uma fala sobre a necessidade de respeito aos direitos dos presos, em Florianópolis, no ano de 2009, um respeitável iludido da “Guerra contra o crime”, sem mais, aumentando a voz, disse-me: “Afinal de que lado você está?” Claro que antes disse não haver entendido nada do que havia enunciado. Ele tinha razão duas vezes. A primeira é porque quando o sujeito objeta do seu lugar sempre está com a razão. Em segundo, não tinha capacidade de entender o discurso porque, de fato, embora fosse um congresso de Direito Penal, era jejuno em diálogos democráticos, fruto de uma educação bancária e que acredita ingenuamente na pena. Adotava a posição do sectarismo e maniqueísmo próprios de quem continua na sua cruzada do “Bem”, procurando defenestrar qualquer representante do “Mal”. Por certo eu teria sido queimado numa fogueira qualquer se isto tivesse se dado alguns anos antes, porque lidar com gente fanática é complicado . Mas não. A platéia, formada em alguma medida por psicanalistas, entendeu o recado. Por isso terminei parafraseando Lacan : “é isto; se é que me entendem”.

Por isto que pode causar um certo desconforto aos “sanitaristas jurídicos” a defesa intransigente dos Direitos Fundamentais de todos – presos ou não. E neste livro, organizando por gente que ocupa o lugar de defensor, num verdadeiro Estado de Exceção que virou regra (Benjamim e Agamben), pode-se buscar reflexões argutas sobre o que se passa no Real desta violência diária. O texto perpassa temas instigantes, sobre o tempo da pena, a duração da medida, a garantia de direitos, garantismo, paradigma restaurativo, bem assim a luta intransigente pela efetivação de uma democracia processual na Execução Penal. 

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