30 de out. de 2010

Um apartheid temático

Do blog  do Alon

Como as mudanças maciças na esfera espiritual e cultural costumam vir com delay em relação à vida material, as campanhas eleitorais ainda são dirigidas a um Brasil repartido entre os “naturalmente” mais sabidos e os mais alienados


No último debate do segundo turno, sexta-feira à noite na TV Globo, as surpresas não apareceram. Sem tempo hábil para sedimentar novidades, ambos os candidatos preferiram consolidar o que se convencionou chamar de “propostas”.

É uma visão minimalista do conceito “proposta”, mas paciência. A sabedoria -ou burrice- geral exige que candidato a presidente da República se comporte como postulante a gerente do governo.

Se ele ou ela enveredam pela polarização em torno de valores, de visões, haverá o risco de gerar um ambiente de passionalismo. O que será imediatamente denunciado como “baixo nível”.Trata-se de viés elitista, segundo a qual o presidente da República deveria abdicar do papel de líder. Luiz Inácio Lula da Silva cuidou espertamente de fugir do figurino, assim como havia feito Fernando Henrique Cardoso.

Justiça se faça, tanto Dilma Rousseff quanto José Serra também ensaiaram libertar-se das amarras, mas o fogo de artilharia que receberam parece ter acabado por demovê-los.

Então o formato do último debate, quando não há mais tempo para quase nada, acaba vindo a calhar. O evento já tradicionalmente organizado pela TV Globo vai adquirindo caráter quase institucional, ritual, sem maiores implicações.

Curioso é que nas democracias mais antigas os debates presidenciais são essencialmente políticos, em torno de visões. Há propostas sim, mas exatamente para concretizar as grandes abordagens.

Será que o povo dali é mais universalista? Possivelmente não. Nos Estados Unidos, todos os testes mostram a ignorância dos americanos sobre assuntos distantes e mesmo próximos.

Talvez a explicação esteja mesmo no caráter mais antigo e consolidado daquelas democracias. Lá é mais complicado dizer que determinados assuntos não devem ser abordados, pois não interessam ao homem simples da rua.

Impressiona que dois pontos, pelo menos, tenham estado completamente ausentes da disputa este ano: a política externa e o binômio juros-câmbio. Quanto ao segundo, é compreensível, pois a patrulha da “pátria financeira” não é bolinho. Ainda que o brasileiro seja esfolado diariamente. O mais esfolado do mundo, aliás.

Mas choca o contraste entre os volume de informações publicadas e veiculadas sobre a política externa brasileira nos últimos oito anos e a quase total ausência do tema nas intervenções dos homens e mulheres que ambicionaram a cadeira hoje de Lula.

A estabilidade econômica -herança principalmente de FHC- e a busca de mais justiça social -herança principalmente de Lula- vão entregar ao próximo chefe de governo um país menos materialmente dividido.

Como as mudanças maciças na esfera espiritual e cultural costumam vir com delay em relação à vida material, as campanhas eleitorais ainda são dirigidas a um Brasil repartido entre os “naturalmente” mais sabidos e os mais alienados.

Uma divisão que expressa muito mais a visão que a elite tem do povo do que a nova realidade do país.

Mas talvez essa seja uma tarefa para as próximas eleições, talvez seja missão para uma próxima etapa.

Façanha

O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas Shannon, carregará este ano uma façanha para o currículo.

A mais acirrada campanha eleitoral desde a redemocratização começou, transcorreu e terminou sem que ninguém, absolutamente ninguém mencionasse uma vez sequer ele, Shannon, a embaixada, o Departamento de Estado ou a Casa Branca.

Nem para o mal nem para o bem.

O sujeito merece uma condecoração em Washingnon.

Bento 16 e Chávez

Para contrastar, personagens como Hugo Chávez e o Papa Bento 16 andaram dando pitaco por aqui. O presidente da Venezuela manifestou publicamente apoio a Dilma e o Sumo Pontífice teve que intervir em defesa dos nossos bispos e padres que pedem aos eleitores não votar em quem defende a legalização do aborto.

Em ambos os casos, como não há sensibilidades coloniais, a coisa foi vista com certa normalidade. É saudável que tenha sido assim.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada neste domingo (31) no Correio Braziliense.

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