8 de dez. de 2010

A perda da independência


Marcelo Semer no Terra Magazine
De São Paulo
Em recente pesquisa do IPEA que apura a percepção popular sobre o funcionamento do Judiciário, a Justiça tirou apenas nota 4,5.
Não é um fato isolado.
Outros dados também recentes, como levantamentos da Fundação Getúlio Vargas, têm demonstrado que o prestígio dos juízes na sociedade está em declínio. Neste dezembro, completamos seis anos da Reforma do Judiciário e talvez seja o momento de se perguntar: o que é que deu errado?
Um dos méritos da pesquisa do IPEA é ter se proposto questionar a legitimidade, por quem e para quem serve a decisão, ao invés de se limitar ao tema da eficiência, que toma boa parte das discussões nos últimos anos.
O Conselho Nacional de Justiça, formatado para ser um instrumento de controle externo, enveredou-se para a criação de metas, como se estivéssemos em uma empresa privada. Circunscreveu os problemas do Poder a questões de organização e método, e ainda mantém a ingenuidade de querer modernizar a Justiça, sem democratizá-la.
Embora a reforma do Judiciário tenha sido vendida para a população com o pretexto de agilizar processos, seu maior efeito foi um aumento da concentração de poderes nos tribunais superiores. Não por acaso, justamente aqueles cujo preenchimento de cargos é integralmente feito pelo chefe do Poder Executivo.
Movida com base em estudos do Banco Mundial, a reforma pretendia assegurar competitividade ao país, por intermédio de maior uniformização da jurisprudência, produzida de cima para baixo. Buscava-se evitar, sobretudo, que decisões de juízes pudessem inviabilizar planos de governo.
Como resultado, a independência do juiz vem sendo continuamente esvaziada. Forjou-se um tribunal tão supremo que é capaz de produzir até mesmo súmulas com força de lei, com o consenso de apenas oito pessoas.

Mas é provável que residam justamente no STF as maiores críticas da sociedade.
De todas as reclamações captadas nas pesquisas, a que mais incomoda é a percepção de que o Judiciário trata diferentemente situações de ricos e pobres, ou que de alguma forma reproduz a desigualdade social.
É verdade que parte do problema se deve à estrutura legal que conspira contra a isonomia.
A permanência do foro privilegiado, herança do absolutismo, é um sinal revelador. O fato de que as autoridades submetam-se a um juiz diferente, de acordo com seu cargo, é uma distinção inconcebível na democracia.
O foro privilegiado não foi extinto na reforma do judiciário e os parlamentares, ao contrário, ainda pretendem aumentá-lo para os casos de improbidade administrativa.
As interpretações judiciais sempre prestigiaram a idéia do privilégio, mesmo quando havia dúvidas jurídicas, como nos casos de homicídio que pela própria Constituição deveriam ser julgados em Júri popular. O entendimento é que isso nunca valeu para as autoridades.
Além de esvaziar a interpretação da igualdade, os juízes reproduziram essas regras anacrônicas nos regimentos de seus tribunais, de modo a formar castas internas, com normas incompreensíveis como a de desembargadores que não são fiscalizados pelas corregedorias.
A conspiração contra a igualdade é mais perceptível ainda na legislação penal.
O direito mais bem tutelado por nossos códigos é a propriedade privada. Um furto de rádio de carro é tão grave quanto a violenta agressão que deixa seqüelas permanentes na vítima. Uma ameaça de roubo com um dedo debaixo da camisa é mais severamente punida que a corrupção em uma grande licitação. E até o seqüestro, privação da liberdade, só é grave se envolver pedido de resgate.
Não bastasse isso, como se sabe, o aparato policial vigia e fiscaliza com muito mais intensidade as atitudes suspeitas cometidas a olho nu. A parte expressiva do trabalho da polícia se dirige a revistas de pessoas de poucos recursos. Não é de se estranhar que as cadeias estejam repletas de pobres. Estes devem provar a cada dia sua inocência, ao passo que demonstrar a culpa de um criminoso de gabarito é uma tarefa quase hercúlea.
As decisões judiciais que envolvem prisão e liberdade não se distanciam muito desse quadro legal; antes, a reproduzem.
E a insuficiência de cargos nas Defensorias Públicas país afora agrava ainda mais a delicada situação dos carentes em contato com a Justiça.
Enquanto direitos humanos não são prioridades no ensino jurídico, e tampouco nos concursos públicos ou nas escolas de magistratura, a precarização dos direitos sociais corre solta, com a expressa anuência do STF, cada vez mais complacente com a flexibilização da legislação trabalhista.
Internamente, a inversão de valores não é muito diferente.
Embora o CNJ jamais tenha questionado seminários de juízes patrocinados por bancos, interessados em decisões judiciais, formulou um código de ética limitando aos magistrados a participação em entidades beneficentes. Persevera numa ótica típica de bedel de colégio interno, tenaz contra as demonstrações de liberdade, tíbio em relação ao exercício promíscuo do poder.
O esvaziamento da primeira instância, a mais profissional do Judiciário, aquela que é preenchida somente por concursos públicos, e o sufocamento da independência judicial, não resolveram a crise de eficiência do Poder Judiciário e ainda tornaram mais aguda a crise de legitimidade.
Desta última, infelizmente, não sairemos sem quebrar as nossas próprias oligarquias, nem abrir mão de privilégios injustificáveis.

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