22 de jun. de 2011

No aniversário de FHC

Leia a íntegra do artigo. 

Por Paulo Moreira Leite

Muitos brasileiros tem uma atitude peculiar em relação a Fernando Henrique Cardoso. Nem sempre concordam com o que ele diz ou pensa. Mas frequentemente torcem para que esteja certo.
No aniversário de 80 anos, FHC não é um político popular. Já foi. Na época do Real, FHC foi eleito e reeleito. Poucos políticos estiveram tão associados às mudanças políticas ocorridas no país nos últimos 40 anos. Quando candidatou-se ao Senado, ainda na ditadura militar, o próprio Luiz Inácio Lula da Silva, sindicalista, distribuiu panfleto em porta de fábrica pedindo voto em Fernando Henrique. FHC não ficou com a cadeira, capturada por André Franco Montoro, mas teve uma votação respeitável.
No alto de minha insignificancia, eu era militante estudantil em 1976, na USP, quandoparticipei de um debate com o sociólogo de oposição Fernando Henrique Cardoso. Dividimos a mesma mesa mas não as mesmas idéias. Ele pedia votos para o MDB. Eu fazia campanha pelo voto nulo e a favor da construção de um partido operário. Fernando Henrique gosta lembrar desse episódio, sempre com bom humor, quando nos encontramos. Ele como político, eu como jornalista.
Tudo isso para dizer que FHC marcou a vida de boa parte dos brasileiros durante a luta contra a ditadura. Também colheu o justo mérito pela derrota da inflação com o Plano Real.
Sociólogo, Fernando Henrique sempre teve o raciocínio articulado, pensou e falou muito. Sobre democracia, sobre economia, sobre a evolução do mundo.
Em sintonia com o debate internacional, jamais teve uma visão provinciana dos assuntos brasileiros. Tem bons interlocutores fora do país e conversa com pensadores que  tem idéias de ponta sobre o mundo contemporâneo.
Nos últimos tempos, o assunto de FHC mudou. Como se sabe, FHC fala de drogas e voltou a criticar Luiz Inácio Lula da Silva.
Principais personagens da democratização brasileira, é obrigatório compará-los. Ambos estão condenados a fazer isso, o tempo inteiro. São adversários políticos. Detestam-se sem cordialidade, embora a linguagem de FHC seja um pouco mais rebuscada que a de Lula neste aspecto. Quem sabe por isso machuque um pouco mais, também.
Na luta cotidiana, raros políticos souberam utilizar a própria erudição com tanta eficiencia para alcançar objetivos políticos. Se Lula tinha a biografia, FHC tinha a biblioteca.
Se Lula é o exemplo típico daquele cidadão que cresceu contra tudo e contra todos, FHC é aquele personagem que dá a impressão de que a história sempre esteve a seu favor, mesmo em horas difíceis. Como ele próprio já admitiu diversas vezes, não tem uma biografia de quem foi obrigado a atravessar várias camadas geológicas antes de receber a luz do sol.
FHC é um político que quase sempre conseguiu dar a impressão de que, com ele, as mudanças podem acontecer naturalmente, sem arranhões nem feridas fundas.
Por sua formação intelectual, FHC tem uma cultura que lhe permite avistar longe e  fundo, embora muitas vezes se possa contestar o uso que deu a tanto conhecimento.  FHC tem uma retórica tão eficiente que consegue dar a impressão de que tem razão mesmo quando esta lhe falta. Num país onde mesmo a chamada elite pensante é uma massa ignorante, poucos tem formação para contestá-lo e um número ainda menor se atreve.
A maioria dos admiradores e críticos simplesmente nunca  entende o que ele escreve. Adere ou repele. Muitos nem  tentaram ler.  Falam de teoria da dependencia sem saber do que se trata. Muitos nem sabem que essa “teoria” nunca foi formulada de forma coerente, como um projeto de explicação do país.
Como pensador, FHC teve dois momentos. Participou da construção do desenvolvimentismo, corrente que dominava o pensamento político dos anos 60, que pregava uma forte intervenção do Estado na economia e no progresso social. Tinha uma visão nacionalista e era herdeira, em graus variados, do pensamento marxista.
A partir dos anos 80/90, FHC  tornou-se um advogado da economia de mercado, realizando uma conversão que incluiu a defesa de privatizações e o apoio cada vez mais firme ao papel das empresas privadas no desenvolvimento. Vários de seus antigos companheiros de viagem cobraram que nunca explicou o que estava errado no que dizia antes.

FHC não esqueceu o escreveu. Seu pensamento mudou, o que é legítimo. Essa mudança foi decisiva em seu futuro político e eu acho que sem ela não teria se tornado ministro da Fazenda de Itamar Franco. Talvez até pudesse tornar-se, um dia, presidente da República. Mas não estaria a bordo da mesma coligação que o sustentou e elegeu, em 1994, como adversário de Luiz Inácio Lula da Silva.
Seria errado imaginar que ele mudou de idéia por oportunismo político. Seu pensamento pode conter avanços ou recuos, conforme o ponto de vista. Mas é autentico. Basta ouvir FHC numa palestra para compreender que suas convicções mudaram, num compasso que tem uma semelhança com as mudanças do mundo, simbolizadas pela queda do muro de Berlim, nos países do socialismo real, e pelo crescimento do conservadorismo de Margareth Tatcher e Ronald Reagan no capitalismo desenvolvido. Quem já tinha maioridade mental, na época, lembra-se que o velho mundo parecia desmanchar-se no ar.
O segundo pensamento de FHC — vamos chamar assim — foi essa aposta. Convencido de que o desenvolvimentismo perecera nas viradas da história, fez um esforço para entender os novos tempos e trazer as mudanças do mundo desenvolvido para sua ação política e para a discussão sobre o papel do Estado.
Anos depois, o balanço dessa mudança está sujeito a muitas interpretações. Minha opinião é que FHC caiu em sua própria armadilha. O tempo demonstrou que a aposta política nas virtudes do mercado como principal força de organização não só da economia, mas também da vida social, tem pouca eficacia para dar resposta ao problemas  do desenvolvimento do pais.
A visão de menos Estado pode até ter ajudado a trazer investimentos e justificar determinadas privatizações, mas não trouxe respostas duradouras nem consistentes para um país com o padrão brasileiro de carencias — economicas, sociais, educacionais, etc.  A conversão do presidente ao um ideário vizinho do neo-liberalismo ajudou de forma decisiva para transformar o PSDB naquilo que é hoje: um partido sem programa, que abriga políticos bons, médios, ruins e até ótimos, mas que não tem um discurso para chegar aos 190 milhões de brasileiros.
O patético esforço tucano para lembrar que foi no governo de FHC que nasceram os programas sociais em vigor no país — com outra dimensão, outra finalidade, outro impacto — parece ignorar que a noção de direitos autorais sempre foi muito relativa nas lutas políticas.
O esforço dos mesmos tucanos para esconder  o legado de FHC nas campanhas eleitorais não reflete rivalidades pessoais dentro da legenda. É um espelho das dificuldades do próprio PSDB para conviver com sua herança. Sucesso de crítica, FHC deixou o Planalto como um fracasso de público.  Tinha popularidade negativa.
Ainda no Planalto FHC tornou-se um presidente-espectador das vantagens e desvantagens da globalização, como um sociólogo que interpreta o que vê com a postura de quem acredita que  nada pode fazer de importante. Do ponto de vista das próprias idéias que defendia, Fernando Henrique extrapolou na ideologia, paralisando-se.
A palavra social-democracia que dá nome a seu partido transformou-se numa casca vazia, tornando-se uma social-democracia sem sindicatos e sem trabalhadores, com um espaço diminuído para os mais pobres, reduzidos à condição de vítimas sem salvação da nova etapa do desenvolvimento humano.
A carreira pública de FHC ensina que, como um raro político que diversas vezes foi capazes de enxergar muitos centímetros além do óbvio, ele obteve um lugar na história quando foi capaz de prestar atenção nas agruras e necessidades do povo. Fez isso nos tempos em que combatia pela democracia e denunciava as mazelas da ditadura. Também coordenou estudos pioneiros sobre a pobreza, que denunciavam a concentração de renda. No Plano Real o país viveu um formidável período de crescimento e distribuição de renda.
Mas FHC confundiu a realidade com suas próprias idéias. Centrado nos mercados dos países desenvolvidos da Europa e Estados Unidos, aos quais atribuia um papel único na elaboração dos destinos maiores do planeta, seu pensamento sempre foi dependente do chamado Primeiro Mundo.
Excluia outras hipóteses de crescimento, forjadas nas nações emergentes, que não possuiam mercado, nem a sombra daquilo que se poderia chamar de uma iniciativa privada poderosa — mas se tornaram os pólos dinâmicos do mundo ao assumir uma perspectiva que, com todas as nuances, ajustes e adaptações, pode-se associar a uma perspectiva desenvolvimentista.
Em busca de um papel sempre difícil, o de ex-presidente, Fernando Henrique voltou à cena nas últimas semanas para tentar abrir uma discussão sobre descriminalização e/ou legalização das drogas.
Fez um filme, participa de conferencias, virou capa de revista. Eu acho que do ponto de vista da história do Brasil essa discusão é lateral. Numa comparação atrevida mas que me parece pertinente: a grande mudança ocorrida nos Estados Unidos na década de 30 foi uma política economica de crescimento e distribuição de renda, o chamado New Deal, e não a abolição da lei seca que proibia o comércio de bebidas alcóolicas.
Não discuto se a descriminalização está certa ou errada. Já dei minha opinião em outras notas, que você pode consultar aqui neste espaço. Eu acho que no momento essa não é a prioridade dos brasileiros. E se há algo para ser discutido em torno de drogas, neste momento, são campanhas educativas para afastar o jovem da maconha, da cocaína, do crack… Este deve ser o papel de quem assume responsabilidades pelos destinos do país.
Há questões mais graves e essenciais, como a educação pública, a saúde, a melhoria das universidades. O Brasil precisa vencer esses problemas para realizar aquelas profecias tão bonitas que, de uns tempos para cá, tornou-se moda anunciar.
Cabe registrar, contudo, que a política de FHC em relação às drogas talvez tenha relação com sua convicção de que o Estado deve ficar cada vez mais longe dos grandes problemas. Mesmo nas drogas, sua solução é deixar o mercado trabalhar e atender aos consumidores, ficando para o Estado o esforço de pagar os prejuízos.

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