6 de fev. de 2012

Dois presos, uma medida

JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE no Blog da Amazônia
Dois índios presos em momentos e locais diferentes: um no Rio de Janeiro, outro no Rio Jordão (AC). Ainda que distantes no tempo e no espaço, essas prisões arbitrárias, no frigir dos ovos, são exemplares porque apontam na mesma direção. Foram realizadas em defesa da propriedade privada e em nome da ordem estabelecida, revelando como o Poder Judiciário, embora considere a justiça cega, às vezes é capaz de ver longe. Muito longe.
O preso do Rio, provavelmente um Puri, aparece no boletim de ocorrência apenas como índio, genérico, sem identidade étnica. Foi encarcerado num momento de reformulação da política pública de segurança. O motivo da prisão está escrito com todas as letras no registro policial: “o gatuno vadio tinha uma expressão suspeitosa de quem estava pensando em roubar”. É. É isso mesmo que você leu. O cara não roubou, mas foi preso porque acharam que ele tinha cara de ladrão.
Desenterro seu caso dos arquivos policiais, porque li agora notícia vinda do Acre com um fato similar. Lá no Acre, município do Jordão, Irineu Kaxinawá, 19 anos, permaneceu trancafiado mais de quatro meses na Penitenciária de Taraucá, sem julgamento algum. Motivo da prisão: teria ajudado seu primo menor de idade a esconder na casa do avô deles, Getúlio Sales - um líder tradicional dos Kaxinawá - roupas e bijuterias de pequeno valor que foram surrupiadas da loja de Maria Raimunda. Detalhemos os dois casos.
Polícia da Corte
No Rio de Janeiro, em 1831
, o posto de chefe de polícia era ocupado por um juiz de direito. Foi, portanto, um juiz que decretou a prisão do índio, numa época em que a polícia era tão eficiente que lia até pensamento. Está lá, no documento que encontrei no Arquivo Nacional, no Fundo Polícia da Corte, formado por 340 volumes manuscritos, entre os quais os livros com a relação de presos feita pela polícia na primeira metade do século XIX.
Os índios estão escondidos no arquivo em documentos da Intendência Geral da Polícia, conhecida depois como Polícia da Corte. Eram muitos, mas os livros usados nas escolas os tornaram invisíveis. Quase sempre sem emprego, sem domicílio fixo, viviam de biscates e perambulavam pelos cortiços do centro da cidade. Foram duramente reprimidos quando D. João VI chegou ao Rio, em 1808, até os anos 1840, quando cessam os registros nos arquivos, depois de apodrecerem nas prisões.
Os motivos alegados para prendê-los eram diversos: atitude suspeita, vadiagem, embriaguez, porte de canivete, desordem, agressão, furto, ausência de permissão para andar na rua depois das 19h e até por estarem “pensando em roubar”.
No entanto, a equipe de pesquisa que coordenei começou a desconfiar desses motivos quando encontramos, em outro documento do Arquivo Geral da Cidade, registro do mesmo índio preso trabalhando como braçal na reforma do Passeio Público, em 1831. É que o Código Penal previa pena de prisão com trabalhos forçados. Naquela época, os negros escravos estavam quase todos ocupados nas fazendas de café do Vale do Paraíba e não havia quem cuidasse das obras públicas. Daí ocorria a prisão dos índios, porque o poder público “estava pensando” em tê-los como mão de obra gratuita.
Quem estudou bem essa documentação foi um gringo, Thomas Holloway, professor de História Latino-Americana na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. Ele vasculhou os arquivos das polícias Militar e Civil do Rio, no século XIX, guardados no Arquivo Nacional, e escreveu o livro “Policing Rio de Janeiro – repression and resistance in the XIX century”, publicado pela Universidade de Stanford.
No livro, o historiador americano analisa a tensão política vivida em 1831, quando o então ministro e futuro regente Diogo Feijó reformulou a política de segurança pública e criou não a UPP, mas o CMP (Corpo Municipal de Permanentes) para manter a ordem vigente. Um dos primeiros comandantes dessa nova polícia militar foi o Duque de Caxias, encarregado de “limpar a cidade”, o que foi feito fechando os olhos aos abusos de autoridade, à violência e à corrupção. E no Acre?
O caso de Tarauacá
Irineu Kaxinawá, de 19 anos, vivia na Aldeia Nova Empresa, Terra Indigena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão. Falava português com dificuldade e foi, em 2010, estudar na cidade. Seu primo roubou umas quinquilharias, ele ajudou a esconder, como o primo é menor de idade, quem foi preso foi ele, Irineu, no dia 3 de outubro do ano passado.
- Foi estudar numa escola pública do Jordão e agora está fazendo mestrado na melhor escola de bandidos do Acre, que é a penal de Tarauacá - escreveu o pai dele, o antropólogo Terri Aquino.
Quem deu a bolsa de mestrado ao Irineu foi a juíza de Tarauacá, uma ex-delegada de polícia do interior do Amazonas, que negou a liberdade provisória para que o acusado respondesse processo em liberdade. Ela alegou que o objetivo da prisão era “evitar que o delinquente, tendo praticado o primeiro crime, pratique novos crimes, quer porque seja acentuadamente propenso à prática delituosa, quer porque, em liberdade, encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida”.
Praticado um crime? Propensão à prática delituosa? De onde é que a magistrada tirou isso, meu Deus! Um menino com bons antecedentes, profissão definida, residência fixa, nunca praticou violência contra gente, bicho ou planta, nunca havia sido preso, não foi ainda julgado para ser considerado delinquente.
A juíza do Acre avançou mais que seu colega do Rio. Enquanto no Rio o índio foi preso porque “estava pensando em roubar”, o kaxinawá, no Acre, permaneceu quase cinco meses numa penitenciária para evitar que ele pensasse em roubar.
- Se ele errou, e até acredito que tenha errado mesmo, a Justiça acreana poderia dar uma chance de recuperação a esse jovem índio de apenas 19 anos. E não ser assim tão rigorosa com um “ladrãozinho de galinha”, podia dar uma pena branda, como prestação de serviços comunitários – escreveu seu pai, angustiado, que passou o Natal e Ano Novo nas aldeias Yawanawá e em visita ao filho preso, depois de conversar com juiz, desembargador, diretor de penitenciaria, defensor público, advogado, secretário de Direitos Humanos, tudo em vão. Seu filho permanecia preso.
- Estou abrindo o meu coração publicamente, mas não estou interessado em piedade de ninguém. Estou apenas atrás de Justiça para o meu moleque. O Acre é cruel. E tem proporcionalmente a maior população carcerária do Brasil. E esse caso do Irineu me dá muita vergonha de ser acreano – escreveu o antropólogo Terri Aquino ao jornalista Altino Machado.
Futurologia
Altino, que mantém o blog mais lido sobre a Amazônia, correndinho, mobilizou Deus e o mundo, jornalistas, professores, advogados, gente em todo o Brasil que conhece os Kaxinawá, através dos trabalhos do Terri, cuja vida continua dedicada aos índios, lutando por suas terras, línguas e culturas.
O jornalistas Elson Martins, a historiadora Fátima Almeida, a cronista Leila Jalul, a radialista Eliane Sinhasique, e tantos outros no Acre, mas também em Minas Gerais - Maria Inês de Almeida, diretora do Centro Cultural da UFMG, Nikão Duarte, professor de jornalismo no Rio Grande Sul, João Dal Poz, antropólogo da UFMT, Ivana Bentes, professora da Escola de Comunicação da UFRJ, todo mundo indignado com o fato de se manter numa penitenciária barra pesada um menino que nem foi ainda julgado, enquanto quem rouba dinheiro público – milhões – e enfia nas cuecas, nas meias, nos bolsos e em contas no exterior – está circulando livremente e até se elegendo como parlamentar.
Altino mobilizou também o advogado João Tezza, que na sexta-feira (27), impetrou um habeas-corpus onde, com todo respeito, critica a juíza que trata um réu primário como delinquente, antes de qualquer condenação, sob a justificativa de que ele cometeria outros crimes. Para o advogado, a juíza “imbuiu-se de poderes mediúnicos”:
- Se a previsão do futuro é indispensável ao exercício da profissão de vidente, é vedada, por lei, no exercício da magistratura, enquanto praticada em um Estado Democrático de Direito - escreveu Tezza.
Irineu vai agora responder em liberdade, graças ao habeas-corpus concedido. Seu pai, um antropólogo muito respeitado e querido na comunidade acadêmica e pelos índios em todo o Brasil, pode respirar, enfim, aliviado. Nós também. No entanto, não são apenas dois presos e uma medida. Existem atualmente mais de 3 mil índios presos em todo Brasil. Para libertá-los um Tezza apenas não basta. É preciso um “Tezzão”.
O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Escreve no Taqui pra ti.

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